O primeiro sinal apareceu há 74 anos. Um risquinho ao lado do olho direito.
Chorou o dia inteiro, vou morrer.
Lágrimas redondas caíam dos olhos azuis inundando o primeiro sulco na pele da menina, que no dia seguinte, brincando no jardim, na praia, no mar, na montanha, olhando os pássaros, catando joaninhas, dançando na chuva, esqueceu de tudo.
Mas o tempo trabalhava, silenciosamente. Depositando mineral nos ossos, tecendo fibras musculares, recheando as carnes tenras, ficou arredondada. Quando começaram a chamá-la de gordinha estava se divertindo em aprender que as letras podiam ser agrupadas formando palavras.
Parecia que Cronos tinha se esquecido dela, abandonado a criança. Até que, intempestivo, alongou-lhe as pernas, os braços, o tronco, o pescoço, a menina virou cisne.
Recém saída do ovo, não sabia se mexer, tropeçava, encolhia-se envergonhada. Não reconhecia os olhares dos outros, até então familiares. Tinham uma sombra nova, demoravam- se sobre ela, sérios. Assustou-se.
Encurvou as costas para esconder os seios que brotavam embaixo da pele rosada.
O tempo, instalado dentro dela, resolveu que era hora de torná-la mulher e com um sopro a inundou de hormônios, e pelas pernas alongadas, escorreu sangue quente.
Olhou-se no espelho e viu uma jovem mulher. Endireitou as costas, sorriu.
Pequenos sinais foram se depositando na pele ainda tão tenra. Uma teia de aranha fininha ao redor dos olhos, fininha, de tanto sorrir.
O espelho lhe devolvia uma mulher alegre, bonita de ver, gostava de apreciar a imagem, mas o mundo a chamava com coisas mais interessantes.
Aos 54 anos, umas das únicas datas que guarda, notou uma linha maior, ao lado da boca, quase uma cicatriz. De tanto rir ou de chorar?
Espantada, ultrajada, como?! A cada vez que sorria, ou chorava ou amava tinha consciência da marca, tão nova, tão funda, tão sua.
Começou a frequentar o espelho e o tempo, madrasta, brincava com ela, a cada dia uma novidade. No início, quase uma sombra, alguns dias depois, mais um presságio.
Nunca me contaram, nunca me avisaram, eu não sabia!
O embate entre eles resultou em uma plástica que alisou os vestígios, aumentou os olhos, linda novamente. Generoso, Saturno deixou que usufruísse de alguns anos de bonança. Sentia-se bem, porém atenta – para acusar qualquer deslize, a superfície de prata, rodeada de luzes feéricas. Venha para cá, deste lado tudo é possível, sussurrava o espelho, lago magnético. Poderia ter mergulhado ali dentro para não mais voltar. Quase cedeu à tentação e morreria, qual Narciso iludido.
Foi salva pelo mundo que continuava a encantá-la, mais interessante do que sua imagem.
Hoje, aos 78 anos, apagou as luzes feéricas, usa o espelho para investigar os novos acontecimentos. Com alguma curiosidade, vê uma velha mulher, coberta de marcas, cada uma com uma história.
Balança a cabeça branca, sorri levemente, é isso.
Sai da frente do espelho e deixa a velha senhora lá, do outro lado.
E vai cuidar da vida, ainda tem muita vida para ser vivida.
Sylvia, adorei seu texto. A descrição da implacável marcha do tempo deixando suas marcas, foi perfeita.
Do alto dos meus 74 anos recordei e vou vivendo a vida que tenho.
Léo Forte