Viagem sem volta, por Sylvia Loeb

Fui convidada para uma viagem sem volta. É para Marte. O primeiro grupo será de quatro pessoas e a ideia é estabelecermos uma colônia. Seremos um grupo de desbravadores e a missão principal na primeira fase será a de trabalhar no sistema de suporte de vida. O que é isso? Acho que deve ser arranjar condições de sobrevivência, pois parece que o meio ambiente é muito hostil, falta oxigênio e a temperatura média é de 63ºC. É uma viagem sem volta. Levaremos sete meses para chegar. Penso nessa viagem desde que fui convidada, há tempos. Até já fiz planos. Imagino que não haja plantas do jeito que conhecemos, pois a 63º, a paisagem deve ser parecida com a do Saara, que chega a 58º. Talvez haja possibilidade de vida, mesmo assim. O problema é a falta de oxigênio, mas como o ser humano é um espécime altamente adaptável, creio que conseguiremos viver com pouco oxigênio dentro de algum tempo. Será uma viagem sem volta. Estou treinando, enfio a cabeça numa bacia de água, já estou chegando quase aos 70 segundos. Acho que até 2022, quando partirmos, estarei devidamente adaptada à falta de oxigênio tendo desenvolvido um simulacro de brânquias perfeitas para a necessidade. Será que poderemos levar espelhos? Penso nisso porque sei que se não olharmos nossa imagem durante muito tempo, perdemos a feição humana, mas não tenho muita certeza disso. Não posso esquecer que será uma viagem sem volta. De qualquer modo, é importante levar espelho, porque se por acaso nosso grupo brigar e resolver não se olhar mais, terei um espelho para me olhar, pois o olhar de alguém é importante para me dizer se estou viva, se estou agradando ou não. Ao menos, terei a mim para olhar. É isso. Vai chegar uma nova leva de gente apenas depois de três anos, ou seja, seremos quatro, apenas nós quatro durante esse tempo. Claro, teremos muito trabalho a fazer criando suporte para a vida, então haverá pouco tempo para tédio. Mas o que faremos no tempo de lazer? Jogar cartas é uma possibilidade, ler também, tenho que levar um imenso estoque de leitura pois vai demorar três anos para renovar. Não esquecer que será uma viagem sem volta. O problema é que não gosto de ler, nem de jogar cartas. Acho chatíssimo aqui na Terra, imagine em Marte. Posso então escrever, mas sobre o quê? A vida lá não será muito agitada e como gosto muito de assuntos pessoais, vou ter que aguçar minha capacidade de observação para captar tudo das pessoas ao meu redor. Gosto de assuntos pessoais, mas não gosto de pessoas. Serei obrigada a me interessar por elas. Será uma viagem sem volta, esse o trato. Querem estudar o efeito de uma viagem sem volta na psique das pessoas.
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SYLVIA LOEB – É psicanalista e escritora. Visite seu site, acesse sua página no Facebook ou escreva para o email [email protected]!

 

 

 

Um comentário

  1. Acho que a narradora se parece com a esteticista do outro conto [espelho meu!]. Na vaidade, na superficialidade. Loeb, nos dois textos, flagra clichês – sem piedade NENHUMA!

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