#ecosdosarau
Viagem à Terra do Fogo,
por Sandra Silvério

Mamãe estava sentada na poltrona da sala, as pernas cobertas pela manta azul, as meias até a canela prendendo a calça do pijama.

– Hoje, vamos para Buenos Aires, falei. E depois, à Terra do Fogo.

Mamãe sorriu.

– Pelo mar, completei.

– Você sabe que eu me sinto mal, ela reclamou.

– Te dou um remedinho, e estiquei a mão sobre o aparador para pegar a vitamina D.

Mamãe já não vive sem isso.

– Convidei Laura e Tatá, avisei.

Mamãe ainda balançava a cabeça quando a campainha tocou.

– Está aberta. Entra.

Eu não podia largar mamãe sozinha subindo a escada do barco para ir abrir a porta.

– Subam, meninas. Hoje vamos navegar em águas geladas.

Mamãe nunca tinha visto pinguins de verdade. Ou não se lembrava. Depois que perdeu a visão, fomos às cataratas do Iguaçu e aos campos de flores do Canadá, mas pinguim ia ser a primeira vez.

Minha sobrinha Laura e sua filha Tatá, de três anos, também gostavam de viajar.

Tatá subiu tombando para os lados.

– Cuidado pra não machucar a bisa, adverti. Senta logo. Para o barco partir, precisa estar todo mundo sentado. A gente pode cair.

Tatá se acomodou na poltrona ao lado de mamãe e puxou um pedaço da coberta. Fazia muito frio e a água gelada estava espirrando em nós.

Laura queria saber a que horas íamos chegar.

– Vamos descer em Buenos Aires?, perguntou várias vezes.

Ela ainda sonhava em reencontrar o ex-namorado, pai de Tatá. Podia ter ido para qualquer lugar do mundo desde que partiu sem dar explicações. Talvez por isso Laura adorasse viajar comigo e com mamãe. Íamos sempre para longe.

– Que graça tem viajar até Santos ou Rio de Janeiro?, mamãe perguntava. E completava: – Se quiserem descer em Buenos Aires, eu não me importo. Sou capaz até de arriscar um tango.

Dizia isso enquanto firmava as pernas no chão e balançava o tronco ao som do acordeão.

– Mamãe, vamos dançar só mais um pouco, avisei. Precisamos voltar para o barco e seguir para o sul para ver os pinguins.

Laura logo esqueceu o que procurava e Tatá queria abraçar um filhotinho. Sabia muita coisa da vida dos pinguins e começou a contar os detalhes para mamãe:

– Eles andam com os pés para fora e sempre com roupa de festa. Vão de um lado para outro o tempo todo juntos, procurando o frio.

Até que Tatá se lembrou do que mais gostava na casa da bisa:

– Tem coca-cola?

– Claro que tem, querida. Vou ter que descer do barco um pouquinho. Espera, falei.

Corri até a cozinha e trouxe o refrigerante num copo descartável.

– No barco só pode copo de plástico, expliquei.

Logo vimos alguns pinguins que brincavam próximo da praia. Tatá pediu para o barco chegar mais perto, mas não era possível.

– Não dá, podemos encalhar, avisei.

Mamãe não se lamentou. Ria, olhando para a direita, escutando os gritos das aves. Comentou que eram muitos e pareciam vestidos para um casamento. Ela balançava a cabeça como quem tinha acertado na escolha do passeio. Tudo tinha valido a pena. Que bom ter guardado o barco. Que bom que estava sempre em ordem para quando quisesse sair. Que bom passear, sentir o cheiro da maresia, as gotas salgadas espirrando no rosto e aquelas aves tão simpáticas fazendo suas correrias.

Mamãe estava corada e mexia a cabeça em sinal de aprovação, quando Tatá se levantou. A menina queria se aproximar da amurada do barco, mas se desequilibrou e o copo de coca-cola tombou no tapete. Mamãe ficou paralisada. Tatá, com o rosto vermelho de vergonha. Laura ficou brava com a filha. Quis ir embora.

– Vamos, acabou a viagem. Vou limpar essa sujeira e vamos embora.

Pedi para Laura esperar. Precisávamos atracar e encaixar as escadas para que elas pudessem descer.

Mamãe permanecia muda. Parou de sorrir e apertava o maxilar com os olhos na mancha escura de refrigerante.

– Vou limpar, mamãe, não se preocupe, avisei. Mas ela não respondia.

Acabamos assim nossa última viagem. Depois desse dia, mamãe às vezes até entrava no barco, mas reclamava de enjoo e não se interessava pela paisagem. Passava as tardes sentada na poltrona, os olhos parados no tapete, na direção do ponto onde tinha caído coca-cola. Nunca mais quis ir para longe.

Esse conto de Sandra Silvério foi lido no sarau do Clube dos Escritores 50+, realizado em dezembro, na Livraria Mandarina, em São Paulo

3 comentários

  1. Nem sei se lembro ou se criei uma memória, tem um hora que a fantasia se mistura com a realidade! Viva a imaginação! Embarquei nessa viagem! Lindo texto

  2. Adorei a delicada mistura de realidade e devaneio nas pessoas presentes no barco. A vida para mim se define assim, neste delicado equilíbrio. Gostei muito.

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