Blog Clube dos Escritores 50+ Lourdes Gutierres Vagarinho

VAGARINHO, ou uma quase história de amor, por Lourdes Gutierres

“O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar.”
Carlos Drummond de Andrade

Encolhido embaixo do banco da praça, o cachorro parecia prostrado. Olhar baço,
respiração ofegante. Ao ouvir passos, ergueu a orelha direita. A mulher passou por ele
sem o notar. As pombas que disputavam um pedaço de pão fugiram em direção à torre
da igreja.

Elvira chegava para a missa de sétimo dia de sua mãe. A roupa preta aumentava
o calor, que em ondas subiam para o rosto, encharcando a testa de suor. Tinha de se
apressar, mas a dor nas juntas travava o ritmo. Sentiu certo alívio ao ver que chegara a
tempo para o sermão. Entre tantos mortos, o padre citou o nome da mãe: Dorotéia de
Jesus.

— Amém, descanse em paz — repetia à exaustão. Sem tempo para processar o
luto, buscava na prece algum consolo. Tudo aconteceu de forma abrupta. — Órfã — a
simples menção dessa palavra a transportava para a beira do abismo. O pai, não
conheceu. O irmão mais velho, pedreiro, caíra do andaime no prédio em construção,
morte instantânea. De mal súbito, a mãe se foi. No hospital, a notícia: descansou,
coitada.

Quando todos se retiravam, Elvira ajoelhada no banco de madeira começou
outra oração. O sentimento de desamparo e o medo da solidão deslizavam pelas contas
do rosário: Tu, que és nossa doce e amorosa Mãe, acolhe-nos no aconchego do teu
manto, no carinho de teus braços amém amém amém.

Do lado de fora da igreja, o cachorro abanou o rabo quando ela passou. Desceu as
escadas antes dela e a esperou no último degrau. Afoita em dissipar nova onda de calor,
ela buscou abrigo na paineira da praça. Em lágrimas, com as duas mãos no rosto,
tentava conter o rio que seguia em direção ao peito, respingando na ferida recente. À
sombra da árvore, o cão também ferido. Naquela manhã, seu dono partira de férias.
Com inúmeras malas no carro, ajeitou-o no banco de trás; e, quando estava próximo à
igreja, abriu a porta e o lançou para fora aos pontapés, fugindo em alta velocidade. Sem
ter para onde ir, o animal deixou-se ficar por ali, revirando lixos em busca de comida.

Próximo à esquina, Elvira deu conta da presença dele, até então invisível. Admirou o porte, as manchas pretas reluzentes ao sol; ao perceber que ele a acompanhava, inquietou-se: o que quer comigo? Confusa, seguiu em direção ao carro estacionado do outro lado da rua. Quando abriu a porta, ele pulou para dentro, aninhou-se no banco. Sem saber como retirá-lo, resolveu ir até a padaria e comprar um salgado para atraí-lo até a calçada. Em vão. De repente, ele levantou a cabeça e emitiu um som que trouxe à lembrança dela o tempo em que a vida escorria pelas marés.

Lá, o mar e a criança a correr na areia atrás do pequeno Rex, enquanto as águas
batiam no rochedo próximo. Numa tarde, o cachorrinho seguia agitado à sua frente,
sumiu por entre as pedras, nunca mais foi visto. A dor em ebulição marcou a menina,
ensimesmou-se.

Ao vislumbrar as marcas da infância, Elvira tomou a decisão: voltaria para casa
com o cachorro. O quintal era grande, com uma jaqueira no meio.

— Vá, vá, aqui você tem bastante espaço e sombra.

Ele permanecia quieto, apenas revirando o rabo. No quarto, foi direto para o
tapete ao lado da cama dela, acomodou as patas entre o focinho, adormeceu. Na
elaboração da lista de providências, ela se deu conta que nunca tivera ninguém sob seus
cuidados: sou capaz de cuidar desse animal? – hora de refazer rotas desfeitas pela vida,
concluiu. Sentou-se junto dele no tapete.

— Vagarinho — batizou-o. Com as pontas dos dedos, começou a acariciar os
pelos, fazendo círculos entre as manchas. O brilho da lua cheia naquele canto do quarto
iluminava sua cantiga: Vagarinho, vagarinho/ Fecha o olho no seu ninho/ E o sono vai
chegar/ E o sono no escurinho/ Vagarinho, vagarinho/ Põe o mundo pra sonhar…

4 comentários

  1. LURDES,

    … “Hora de refazer rotas desfeitas pela vida”…. complementaria com rotas perdidas… sai no mesmo, sim, mas perdidas fala em perda enquanto desfeitas é pura poesia, leve, leve como é seu texto que fala de perdas.
    Seus textos são encantos com o arredor de si. Uma sensibilidade comovente. Venho tendo inveja ( boa como dizem) desta capacidade de tornar a realidade uma poesia!
    Obrigada
    beijo

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