Vácuo,
por Léo Forte

 

 

 

As noites parecem eternas. Por horas procura dormir, e  quando consegue é um sono curto, agitado, perseguido por um sonho recorrente. “Uma mulher alta, de branco, cabelos negros, se afasta e ele nunca consegue alcançá-la”. Acorda suado, aflito. O relógio iluminado conta as horas, só passaram quarenta minutos. Tenta de novo, cochila, acorda e espera o amanhecer.

Com os primeiros raios de sol, levanta, toma banho e sai sempre de cabeça baixa, sem cumprimentar ou falar com ninguém. No começo, os porteiros do prédio onde mora estranhavam. Com o tempo acostumaram com esse seu jeito. Afinal já estava assim há meses, desde que ela se foi.  

Andava sem destino, sempre atento a tudo que a visão periférica de seu olhar pra baixo alcançava. Familiarizou-se com as sujeiras e buracos das calçadas, afinal, todas eram semelhantes. Com os moradores de rua que dormem em cantos de parede, disputados à noite com os ratos, cheirando forte a urina e cachaça. Jovens drogados, com e sem tremeliques pela ausência da droga, saindo de cobertas imundas com a cara encardida virada em posições estranhas, lembrando saco de lixo aberto. Pedintes, que estendiam a mão e nem mais se davam ao trabalho de pedir. Bêbados fazendo graça aos passantes ou brigando com o vento. As pessoas que passavam: mulheres de salto e homens em seus ternos de trabalho. Grupos de moças de  calças agarradas, cós baixo, barrigas gordas saltando pra fora da blusa curta com piercings semelhantes a enfeite de lustre de cristal nos umbigos. Tudo via, registrava, resmungava e jogava no arquivo do desinteresse.

Com fome, entrava no primeiro bar onde passava, pedia café com leite e pão com manteiga, porque era  uma das poucas coisas de sua lembrança que gostava. Comia, pagava, e como um cachorro hipnotizado, continuava sua peregrinação pelas calçadas, até cansar. Então entrava em um ônibus qualquer, sem se  importar com o itinerário e seguia até o ponto final. Depois, retornava sempre de olhos fechados, fingindo dormir. Resmungando.

No final de um destes dias, na volta para casa, vinha por um calçadão do centro, quando ouviu o som alto de uma gravação antiga de uma diva do jazz, Abbey Lincoln, saindo de uma loja de venda de discos. Quem sabe o dono motivado pelo entardecer, tivesse colocado aquela gravação para acompanhar a melancolia da hora na queda da noite.  

Estancou no meio da calçada. Foi para o canto da porta de entrada e ficou ouvindo a sensível interpretação da canção de Michel Legrand. O título e a frase inicial da música começaram a trazê-lo para a realidade:

What are you doing the rest of your life?

Acabou de ouvir, saiu com a pergunta repetindo, repetindo e repetindo em sua cabeça, enquanto resmungava:

“O que você fará o resto de sua vida”?

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LEONARDO FORTE (LÉO) – 73 anos, economista, publicitário aposentado, casado, dois filhos e uma neta. Apaixonado por cinema, literatura e música, escreve contos e promove encontros para ensino de jazz.

 

3 comentários

  1. Pergunta fundamental em vários momentos da vida, pergunta para a qual não achamos resposta definitiva e que nos incita a procurar, sempre. Enquanto estiver pulsando, sinal de que ainda estamos vivos!
    A canção no meio do texto, bravo!

  2. Há dias assim
    – de estar num vácuo . Li seu texto num fôlego só ! Viva a arte ! Como uma música pode nos tirar do vácuo e ligar a emoção! Viva!

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