Blog Clube dos Escritores 50+Um homem simples

UM HOMEM SIMPLES,
por Lourdes Gutierres

Pela fresta da janela, nuvens escuras encobrem o amanhecer. No entanto, a manhã me convoca a ampliar espaços de visão para compreender o conflito instalado do lado de fora de minha morada.

Chega até mim a figura de meu pai que, sem nenhum afago, impunha seu código de virtudes: “nesse caso, você deve agir assim; nesse outro assim assado…”. E sempre, sempre, insistia: há de ter dignidade. Sem que nenhum Sócrates tivesse passado em sua vida, ele procurava extrair argumentos para questões diversas, do cotidiano ou mesmo da complexidade humana. Gostava de inquirir a todos, inclusive a mim, desde a época em que bem menina brincava de chafurdar na lama da chuva. Lembro quando queria que eu explicasse por que havia achado graça, rido, de uma piada sobre certo culto religioso que ouvira no rádio. Segundo ele, era de extremo mau gosto, preconceituosa, discriminatória, segregacionista; e que nossos vizinhos, Dona Samira e toda a família eram mulçumanos. Tinham cruzado o oceano em busca de paz, porque lá nas terras deles, além da fome, o conflito nunca cessava. Aqui, compartilhavam de nossos costumes, sempre prontos a ajudar no que fosse preciso. Além disso, aos domingos, a filha nos trazia doces raros, coisas da terra de lá, explicava.

Ele nunca expressou alguma crença, como também não frequentava igrejas. Do padre de nossa paróquia, dizia, por vezes, que era um cínico, vigarista. Mas não me impediu de fazer a primeira comunhão, só não compareceu à cerimônia. Em casa, aceitou, sem comentários, o pedaço de bolo oferecido para celebrar o evento. Logo entendi que tinha diante de mim um código de família e outro da religião que iam impregnando nossa maneira de viver.

Depois de tanto tempo, já sou passada em anos, sinto adentrar, por este estreito espaço da minha janela, gritos, fumaça, lamentos. A violência do outro lado do mundo em chamas me traz profunda inquietação; busco argumentos e me chegam lições da infância. O que justifica a guerra?

Penso no meu pai que, sem teorias acadêmicas, buscava na intuição, no senso comum, a construção da paz necessária para a convivência de todos, independente de raça, cor, religião. Mas meu pai era um homem simples. Simplesmente justo.

Lourdes Gutierres

3 comentários

  1. Nada justifica a guerra, nada.
    Faltam homens como o seu pai que sentiam no coração, e não no fígado, as questões que hoje estão nas mãos de homens que agem pelo ego, pelo fígado, pelo poder sem limites. A paz… ah, cada vez mais distante de nós, os homens e mulheres simples de boa vontade.
    Obrigada! 🫶🏼

  2. Lourdes, que recorte bonito você fez da memória do seu pai, dos valores e virtudes que hoje fazem parte de você. Gostei muito.

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