Escrevi esse conto há 3 anos para os gêmeos de uma amiga muito querida, que haviam acabado de nascer valentemente às vésperas de Natal, com mal completados 6 meses de gestação. Na época, pensei que nascer nunca é fácil, sequer combina com as tantas fitas e cores pasteis que a gente usa para enfeitar nossos bebês. Nascer é para quem tem coragem. Os bebês sabem disso. As mães também. Esse ano de 2020 testou nossa valentia. Estamos em casa, estamos às voltas com o isolamento, com a solidão e a saudades. É assim que estamos esperando esse Natal nascer. Mas estamos vivos e as palavras são boas companhias, para quem escreve, para quem lê. O Clube dos Escritores 50+ nos fez companhia esse ano. Escrever, como disse uma amiga, cura. Vamos esperar juntos um ano mais doce, mais manso. Novas histórias para alimentar nossa imaginação. Nos vemos em 2021!
E lá vai o conto….
Era uma vez, num amanhã qualquer…uma mulher e um homem. Não, não são uma mulher e um homem, olha lá, são tão jovens! Era uma vez, num amanhã qualquer, dois jovens fazendo sexo em um catre. O que é um catre? Uma espécie de cama, mas sem enfeites. Um fiapo de luz entra por uma fresta no alto e ilumina os corpos que se movem e se ajeitam um no outro, familiares e íntimos. São apaixonados? Não sabem. Estão lá presos desde que nasceram, conhecem apenas um ao outro e decoraram seus corpos e o que eles dizem. Fazem amor, como fazem sexo, como comem os farelos que caem do teto uma vez por dia, como balançam no ritmo do coração um do outro. Espera, ele parou. Sim, ouviu algo: o silêncio repentino do mundo. Ele levanta e se assusta quando o alçapão abre com o vento trazendo uma nuvem de poeira para dentro do esconderijo. Mas pega a mão dela e saem pelo buraco brilhante de pó. O sol cega os dois, ele cobre os olhos dela, ela abraça a barriga que, há algum tempo, cresce a cada dia. Mas ela não sabe? Como poderia? Nunca viu ninguém senão ele. E ele também não sabe. Olham pela primeira vez a terra, calcinada. Calcinada? Como queimar, mas é quando até a alma queima. Eles acham a névoa bela e, de todo jeito, não pensam em voltar para o escuro. Avançam alguns passos. Tropeçam num ser da cor da névoa. Era um imenso touro. Não se assustam, nem têm medo. O touro chega perto dela e encosta a cabeça na barriga roliça. Ela afaga o pelo macio e deixa que ele se aninhe por alguns instantes no seu corpo. Depois os três voltam a caminhar. De dentro da névoa emerge outro ser, cinza. Pisa no chão com a desenvoltura de quem vem caminhando há um longo tempo. Era um burro, mas como poderiam saber? O burro deita-se bem do lado dela e acena com a cabeça para que ela suba em suas costas. Ela toca com os lábios o focinho quente e aceita. O burro levanta-se e os quatro continuam a caminhar, afundando mais e mais dentro da névoa. Melhor seria que voltassem…não, agora não conseguem mais voltar. Ele parece saber onde vai. Ela não se importa, não neste momento. Toda sua atenção está nos movimentos da sua barriga. Mas confia. Por que? Não sei, são coisas do escuro essas de confiar. De repente, de dentro da névoa, uma imensa árvore ressequida surge diante deles. Eles param. É ali. Entram na gruta que a árvore esconde e esperam. Um galo canta. Mas o que é um galo? A criança nasce. Não pergunte como. As crianças apenas sabem como nascer.
Ela se ajeita no corpo dele e segura a criança nos braços. O burro de um lado, o touro do outro. Por que um touro e um burro? Não sei, eles estavam lá, esperando a história passar. O galo vá lá, faz sentido. Sim… Já vai anoitecendo? Sim, mas não está escuro. Tem uma estrela aninhada no topo de árvore. Não vejo nenhuma estrela. Porque essa estrela a gente não vê com os olhos. Não tem nenhuma estrela, é só o pó. Pode ser, mas aos poucos outros vão chegando. Vindos de onde? Não sei, de outras histórias talvez. Nus e exaustos, cobertos de pó, os olhos ardendo de esperar milagres. Apenas sabem que chegaram porque a criança chora. Chora por que? De valentia!
Essa é uma história de livro ou uma história inventada? Uma história inventada. E como vai acabar? Não sei…
Para Zeca e Stela, na véspera de Natal
Adília Belotti é jornalista, apaixonada por ideias, pessoas, assuntos femininos, espiritualidade, religião, velhice e web…não necessariamente nessa ordem.
Que coisa mais linda, mais tocante, Adília! Você, com sua sensibilidade à flor da pele, nos guia, mais uma vez, por uma paisagem surpreendente: dessa vez não encontramos o pão, mas os jovens nus, o touro, o burro, o galo e finalmente a estrela que tudo ilumina, mas não é vista por aqueles que chegam, nus, empoeirados e exaustos, à espera de um milagre. O milagre aconteceu no seu conto. Obrigada!
Que conto de natal! Sagrado e profano, ao mesmo tempo. E as brumas estão lá, como no outro conto, como em Polanski, outra vez…