blog Clube dos Escritores 50+ Carlos de Castro Tropicão

Tropicão,
por Carlos de Castro

São Sebastião, rua da Praia. O fato é que Amâncio chegou cedo. O comércio só abre às 9:00. Não deu oito e meia ainda. Huum, melhor esperar, caçar um café, alguma coisa para ler – existiriam bancas de jornal ainda por aqui? Opa, olha só! Um banco vazio no calçadão…

Sentou-se.

A visão luminosa de Ilhabela é um convite irresistível. O céu aberto, essa calma no mundo, o levam a descambar para um estado de romantismo desenfreado. Mário Quintana o inspira: a Ilha é linda, tão vestida e, no entanto, inteiramente nua. Coberta com o manto verde das matas, mas sem os costumeiros véus de nuvens. O Sol a beija de alto a baixo, o mar a corteja com alguma malícia, escondendo sua força. O mesmo mar que bate nas pedras daqui: vai e vem, vai e vem, vai e vem: hipnótico. Amâncio fecha os olhos, inspira profundo, percebe, simultâneos, a brisa leve e o calor do Sol. Pensa em meditar ou, ao menos, tirar um pequeno cochilo…

Sonha.

Alguns gritos o incomodam. Vem de um sujeito largado no chão, recostado na murada da orla. Não consegue compreender bem suas queixas, parece tratar-se de reclamação contra o ciclista que acabou de passar rente a seus pés.

Instantaneamente Amâncio é transportado mais de sessenta anos para trás. Tinha oito ou nove anos, descia a avenida em direção à escola. Ao passar pelo trecho comercial se distrai com uma vitrine e, de repente, tropeça numa perna. Aos tropicões recupera o equilíbrio ao mesmo tempo em que ouve os xingamentos. Eram do mendigo que pedia esmolas sentado no chão com a perna estendida.

 Assustado, sai correndo. Num primeiro momento achou que o mendigo viria atrás dele. Vem a imagem do “homem do saco”, personagem que assustava a criançada. Seria o dito cujo?

Surge uma dúvida: o mendigo estava mesmo com a perna estendida ou a estendeu de propósito para o derrubar e se divertir com isso? É mesmo, reflete. Talvez o homem se sentisse melhor quando o via: era um dos poucos momentos em que tinha poder sobre alguém, um dos poucos momentos onde era visto e até temido. Para quem vivia ignorado pela maioria e enxotado de um canto para outro…

 Desperta.

 Volta ao banco mágico. Continua a passear no tempo e no espaço entre as ruas de sua infância e a São Sebastião de hoje quando lhe ocorre um experimento: seu relacionamento com aquele antigo morador de rua não foi bom, é certo. Quem sabe ele possa ter melhores resultados com o atual representante da “classe”, presente aí ao lado. Será possível ouvi-lo e entender um pouco do que se passa na sua cabeça? E com isso se redimir ou curar traumas antigos e preconceitos?

          – Bom dia amigo

Ele responde com um olhar desconfiado e um muxoxo. A conversa avança com dificuldade – Tião, o seu nome. Fala que já foi pescador, perdeu tudo, agora anda por aí. O cachorro morreu, atropelado, já estava meio velho. Atropelado, mas vai arrumar outro.

          – Dá uma ajuda aí doutor…

          – Olha, eu não tenho dinheiro aqui, só estou com o cartão. Mas vou lá no bar e pago uma média e um pão de manteiga. Tá bom?

Quando Tião ameaça levantar, fica claro que ele teria um certo trabalho para reunir seus “pertences”, seria melhor mudar a estratégia:

          – Faz o seguinte, fica aí que eu vou até lá e trago seu café. Ele responde com outro muxoxo. Agradecimento desconfiado, supõe-se.

No caminho para o bar, Amâncio passa pela sorveteria Rocha e como sempre dá uma olhada no armário que ela mantem com livros doados. De vez em quando ele traz alguns e volta e meia acha coisa interessante para levar. Olha aí, um exemplar antigo, mas ainda em estado razoável: “O Velho e o Mar” – Hemingway. Veio a calhar.

Entrega a Tião a média e o pão com manteiga, acompanhados do livrinho. Propõe um trato: ao longo dessa semana em que estará na cidade, Amâncio passaria todo o dia por ali, pagaria seu café e conversariam um pouco sobre o livro. Uma história de um velho pescador que luta para manter sua honra.

          – Acho que você vai gostar.

Aparentemente ele topa o acordo. Surge alguma esperança na cabeça de Amâncio. Talvez a ideia não tenha sido tão maluca. Desde os romanos “Panis et Circenses” têm funcionado para controle das massas. “Panis et Liber” talvez funcione para ajudar um indivíduo a se levantar para a vida. Talvez…  

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