Clube dos Escritores 50+ Eder Quintão, Tempos Modernos, Photo by Cottonbro

Tempos modernos
(ou o mundo visto por mim: Covid-19),
por Eder Quintão

“Penso, logo existo”, disse o filósofo. Trocar para “existo, logo penso”, só um filósofo-guru terra-planista e geo-cêntrico morador na matriz norte-americana. Mas ele é conhecido por versão ainda mais criativa: “existo, não penso”. Mas, deixo a política humana de lado como vírus que sou. Não quero me contaminar por ela.

Existem seres multicelulares que, ao que parece pensam, como abelha, polvo, corvo, golfinho, elefante, o cãozinho de estimação de minha vizinha – o Duque – esse, tenho certeza, é um pensante, mas sem o dom da língua; soubesse falar diria frase tão memorável quanto a do filósofo. Percebo isso claramente quando seu dono está comendo uma costelinha de porco assada: Duque pensa saltitante e tão sofregamente que as palavras quase saem. Ele só falta falar!

Não conto vantagem sobre os chimpanzés, esses primos diferem dos humanos em apenas 1% do código genético; certamente pensam também, mas esses não surpreendem: se parecem demais com humanos, ou, parafraseando a frase filosófica acima, muitos humanos se parecem com eles. 

Conversa com filósofos humanos nem sempre é proveitosa e salutar. Há exemplos como desse tolo que vive no exterior, ditam ordens a presidentes, são obedecidos: são os neo-fanáticos. Nós, os vírus, sabemos que não temos mesmo muito bom senso embora muitas vezes sejamos benéficos a nossos irmãos humanos e eles nos são até gratos por isso. Muitos de nós, chamados fagos, ao destruir bactérias limpam até esgotos.

Se pensássemos como os humanos faríamos estragos memoráveis, eternos, nunca perecíveis. Sucumbissem os humanos completamente a nossas investidas, não haveria mais deles para nos abrigar e cessaria a existência de ambos. Suicídio coletivo. A despeito de ínfimos não somos descerebrados, mas bastante inteligentes para preservar os humanos em quantidades suficientes a satisfazerem nossas básicas necessidades. Porém, às vezes creio –  posso até dizer penso – ser essa lógica tipicamente criacionista em que nós, os vírus, fazemos tudo com senso de propósito, com “design” inteligente, jamais por obra do acaso, que os humanos batizaram com o difícil apelido de “teleológico” (dicionários não o explicam com a devida clareza): os vírus sabem o que fazem. Isso até faz muito sentido. Vejamos por que. DNA é a origem de todo o mundo vivo, mesmo que lá pelas tantas uns poucos, como o que fala aqui, tenham virado RNA, coisas da evolução, do acaso, diz a ciência dos homens. Portanto, tudo que dele resulta, a célula completa, o conjunto delas fazendo o órgão, o ser inteiro, e suas capacidades, são inerentes, impressas no DNA, ou seja, esse tal DNA que existe desde os primórdios da vida, já carregaria o pensar. Pode-se dizer carrega a alma, se assim podemos defini-la teologicamente. Ora, se isso for ilógico, teremos que deduzir haver outra opção: é a influência do ambiente sobre o ser que promoveu atributos em tal extensão a gerar o pensamento. Tais componentes do ambiente são imensuráveis, talvez abstratos demais para nossa compreensão imediata, ou preferiremos chamá-los mais prosaicamente, obra de Deus, “design” inteligente.

Parece óbvio que pela singeleza algo surgiu parecido comigo num passado distante: um vírus, ou meu parente, certamente menos evoluído do que eu dos tempos modernos, agora tão bem vivido e adequadamente adaptado. Um pacote deles foi trombando entre si mesmos naquelas fontes termais submarinas e de tal forma que alguns espontaneamente acharam gosto, atração química de um pelo outro: um chamou-se macho e o outro, fêmea (um outro gênero levou bilhões de anos para aparecer, mas, inutilmente pois que de duração efêmera, já que nunca se reproduz, o que deve explicar ser minoria até hoje). O fato é que deram certo. Sexo é de todas habilidades da natureza a mais frutífera, porque prazerosa: uma célula copulando com outra célula, inocentemente, mas certamente induzindo mútuo prazer. Ninguém perguntou se as células têm orgasmo. O que sente o espermatozoide quando bate no óvulo? Bom seria se falassem, mas algo suas moléculas devem sentir, caso contrário a corrida do macho não seria assim tão desenfreada, ambiciosa, voraz, aprendida em algum ponto remoto na história da vida.

Esses gigantes multicelulares, humanos, apesar de terem conseguido feitos tão espetaculares modificando o planeta como nenhum monstro irracional precedente, incluindo nós mesmos – os vírus – chegam a nos espantar pela ingenuidade. Creem os coitados serem onipotentes, senhores absolutos da natureza. Mas, não sabem o tamanho de sua vulnerabilidade e insignificância. Diariamente, quando não sofrem de prisão de ventre, eliminam pelas descargas das privadas muito mais DNA de suas bactérias intestinais do que eles próprios possuem em todas suas células corpóreas juntas. Os humanos são simplesmente hospedeiros de unicelulares em suas tripas. Suas gigantescas carcaças só servem a esse propósito. Ah se as bactérias falassem!… Só se ouve uma ou outra palavrinha de protesto humano quando produzem gases, que embora em geral silentes, às vezes são ruidosos e socialmente indesejáveis. Esses infelizes humanos só se prestam a isso: depósitos de bactérias úteis, chamadas seres saprófitos. Essa é a pura realidade, a finalidade biológica desse reles gênero Homo sapiens. Mas não é só isso.

Os seres que importam, pois se reproduzem, não são só o bicho Homo – mero portador das células que realmente interessam biologicamente – mas as reprodutivas: espermatozoide e óvulo. O espermatozoide se parece com um vírus como eu de tão singela sua estrutura, mas tal como vírus, portador de uma energia extraordinária que deixa a totalidade dos humanos no chinelo, mesmo os olímpicos. E mais, o espermatozoide é um típico voraz agente infectante, um atleta, imbatível se comparado a qualquer super-humano. Veja como é inteligente: jogados no fundo da vagina descobrem sozinhos o próprio percurso (consta que o bichinho não tem olhos, mesmo porque seriam desnecessários correndo em plena escuridão vaginal), mas disparam numa velocidade ultrassônica em um lamaçal pegajoso, como que saltando obstáculos, e em minutos correm uma distância equivalente à de São Paulo ao Rio, na devida proporção aquela entre o colo do útero e a proximidade da trompa para, audacioso, mergulhar de cabeça, já quase sem fôlego, no óvulo. O bichinho deve pensar, claro, pois espertíssimo, de imediato cerca-se de uma barreira do óvulo, verdadeira cortina de ferro intransponível aos perdedores, seus frustrados companheiros de maratona. A fecundação é um protótipo de infecção viral, só que esta é promíscua, melhor dito, democrática, permite a participação de todos interessados, não discrimina pela capacidade de correr, melhor ainda, não tem preconceito de raça e religião. Eu, o vírus, sou um cavaleiro medieval honrado, respeitado. Perto dele, o espermatozoide é um membro qualquer da ralé celular. De que servem então os corpos desses primatas? Apenas de abrigo, mero envoltório, para suas células reprodutoras; essas, sim, realmente comandam a biologia e caracterizam a espécie; são a fonte da vida, o resto é supérfluo, de existência efêmera, mero invólucro. Os gametas, verdadeiros objetivos da criação, geram seres eficazes apenas como seus meros transportadores.  Gameta gera gameta; o bicho inteiro é só o intermediário. Ovo gera ovo; a galinha é apenas agente transportador perecível.

Convenhamos, eu Covid-19, sou esteticamente uma graça, numa só bolinha sou cabeça ( e coroada !), tronco e membros, redondinho, cercado de espículas bem formadas, lisas, pareço graciosa mina submarina. E, aliás, sou, mas só explodo quando penetro uma célula (detenho chaves poderosas, mas escondo o segredo delas, reconhecendo apenas que arrombo fechaduras frágeis), derreto-me dentro dela, esparramo-me por inteiro, um deleite, sou guarnecido por ela que colabora em minha reprodução fornecendo-me autênticas cópias idênticas, e feliz com a multidão de gêmeos idênticos gerados sou exportado orgulhosamente. Confesso: nunca soube de mãe tão generosa como a célula humana.  

Há muito tempo um humano esperto notou que as mulheres que ordenhavam vacas infectadas com uma espécie nossa, a varíola, não se contaminavam. Elas adquiriam um dos nossos, mais fraquinho, um pobretão bem-humorado, que inoculado no humano tornou-o resistente a nós mesmos, ou seja, um vírus traidor, segundo uns, sábio segundo uns poucos. Infelizmente era um tolo, como se mostrou depois: eliminado do hospedeiro humano permitiu que essa espécie virótica se perpetuasse só nas vacas. Não obstante, a realidade para eles acabou sendo bem outra e desastrosa: sumiram do planeta. Sobrevivem hoje num laboratório francês, mais como relíquia do passado, como num museu de antiguidades, conservado a temperaturas desumanas, mais baixas que nos extremos dos polos, mais parecendo múmia inca preservada na gélida cordilheira dos Andes. Essa batalha perdemos e nos lamentaremos eternamente. Perdemos também outras, como da poliomielite, sarampo, rubéola, caxumba, mas resistimos incólumes com outras, como dengue em que esses nossos parentes, melhor providos, continuam fustigando os humanos e, felizmente, poupando os mosquitos: se esses perecessem nunca atingiriam seus objetivos. Mantemos renhida batalha do HIV contra um punhado de venenos que os intoxicam. Um parente nosso, um nobre de nossa corte chamado Treponema pallidum, fez retorno triunfal quando pensávamos que havia há muito partido para outra, como a varíola: anda às turras com um verme pernicioso chamado Penicillium notatum: verdadeira luta de box, não sabemos quem vencerá. Temos ainda uns primos acostumados às florestas, como a febre amarela, que resistem galhardamente, mas, convenhamos, uns malucos com essa mania de entrar na célula para morrerem com ela: suicídio! Dessa eu, Covid-19, procuro me safar. Entro faço umas cócegas em seus pulmões, mato pouquíssimo, só mesmo esses velhinhos imprestáveis que já estão perto do fim de suas jornadas e outros que já iam mesmo partir por suas crônicas mazelas clínicas.

Confesso, tenho defeito de que me envergonho porque me desmoraliza: sempre tive aversão a políticos; raramente pego um e mais por acaso quando acintosamente se expõem sem qualquer proteção por que sofrem de uma doença grave incurável: insaciável apetite por votos e remédios falsos contra nós. Isso é por demais curioso, talvez advenha do inútil hábito deles desde o tempo de Herodes: lavar as mãos. Atualmente exigem que os humanos façam o mesmo para se livrarem de nós, os santos dos últimos dias.

Vou rodando o mundo bem faceiro. E como ando! Conheço o planeta todo, nunca imaginei faria turismo gratuito, sem comprar passagem. Virei mundo de avião, navio de cruzeiro (e que luxo!), até em camelo. Tem sido uma delícia. Comecei lá na China quando andava morando recentemente nuns morcegos desprecavidos, mas encontrei alguns humanos famintos que me jogaram goela abaixo como se eu fosse um guiso saboroso, e fui pr’a dentro das barrigas deles, não por garfos, mas via aqueles pauzinhos de bambu que usam: engolem com eles bem menos, mas sempre nos provendo caronas eficientes.

E que sucesso! Chegamos ao apogeu. Falam de nós mundo afora, e como alardeiam! Temos profundo orgulho de nossos feitos! Nenhum vírus ou bactéria teve tanta divulgação quanto a nossa. Aquela da distante peste bubônica, a Yersinia pestis, charmosa, lindinha, já era. Afinal, vivia em pulga de rato, não um ambiente muito saudável. Somos hoje mais falados do que olimpíadas, copas do mundo, bomba atômica. Ganhamos mais notoriedade do que o câncer (deve estar enciumado recentemente). Até as duas guerras mundiais não foram tão universais quanto a nossa investida: a nossa é devastadora, completa, nenhum cantinho do planeta nos escapa. É verdade, mais do que já conseguimos, morreu muito mais gente nos outros dois conflitos mundiais, mas não desistimos da disputa: ainda estamos no páreo, temos bastante tempo e fôlego. Gripe espanhola? Ah, priminha raquítica comparada conosco! Ao longa da história humana esquecerão essa espanholinha medíocre e se lembrarão para sempre de nós. E tem mais, em criatividade temos sido imbatíveis. Provocamos encrencas mil, fizemos políticos bater as cabeças, guilhotinamos ministro da saúde, expomos a rapinagem de nações roubando proteção aos países pobres, e governos incompetentes que escondem nossa presença: quanto mais assim fizerem, melhor para nossas fortunas. Até produzimos atos pelos quais os humanos nos agradecem, profunda e surpreendentemente, e embora saibam dissimular, não os reconhecem: botamos gente de monte parasitando languidamente dentro de suas casas confortáveis, divertindo-se à larga, comendo pantagruelicamente, sorvendo com avidez a água de Bacco sem que haja cervejaria capaz de suprir tanta demanda. Justificamos também boas ações dos humanos às quais eles tinham notória aversão, e foram muitas, incontáveis. Talvez sejamos mais lembrados por elas. Poupamos tantos de tantas visitas indesejáveis, e não precisamos fazê-los inventar desculpas para desfazerem compromissos sociais desagradáveis, sentem muito mais graça brincando apenas via skype com aqueles netos endiabrados, dispensando suas presenças físicas. Ouvem menos ruído nas ruas e mais o canto de pássaros, economizam mais não comprando inutilidades nos shoppings, pela primeira vez as vias nunca foram tão limpas, e, acreditem, fizemos os humanos morrerem menos de suas causas naturais simplesmente por estarem pouco assíduos às consultas médicas, e proibidos de remover as máscaras não sofrem nas mãos desses sádicos dentistas, felizmente e merecidamente, todos de quarentena para alívio dos sapiens. Seus celulares não são roubados, podem atravessar as ruas em segurança. O ar está mais limpo. Usa-se pouquíssima gasolina, felizmente, já que ela nos destrói mais do que álcool gel. Antigamente ficava-se dentro de casa martirizado pelo tédio; hoje, fica-se sem dar conta da oferta infinita de internet, economiza-se sem sessões de cinema. Que economia! A lista de benefícios seguiria infindável. A vida sexual faz considerável progresso: se nas farmácias já falta hidroxiquicloroquina, Viagra desapareceu muito antes, mas ninguém tem coragem de confessar. E tem mais: aqueles que liquidamos hoje serão fartamente substituídos pela avalanche de nascituros gerados pelo recôndito tédio e cama prolongada. A humanidade já viu esse filme antes quando faltou luz em uma grande cidade.

Acima de tudo, expusemos as parcas reservas de caráter humanitário:  mandam comida e papel higiênico para os vulneráveis nas favelas e moradores de rua que comem pouco, sempre modestos em suas higienes pessoais. Uns banqueiros biliardários até abriram seus cofres. Que milagres perpetramos! Alguém testemunhou antes outros iguais? Duvidamos!  Enfim, nosso legado ainda será de gratidão desses humanos apesar dos tantos que mandamos para baixo da terra. No frigir dos ovos, fizemo-los muito mais humanos. Talvez um dia o prêmio Nobel da paz nos seja concedido. Sem falsa modéstia, aprimoramos extraordinariamente a evolução do Homo sapiens. Isso é típica evolução darwiniana. Doravante se tornarão mais sapiens. A história nos fará justiça, e o mundo, graças a nós e apesar de nossa insignificância, não será mais o mesmo.

Afetuosamente,

À sua espera

Covid-19

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