Mais que um parente, ainda que quase parente, Thiago de Mello, poeta amazonense, foi meu amigo de poesia e sentimento. O mistério levou-o hoje (14/01/2022) pela manhã para o invisível, concepção próxima de infinito onde cabe tudo, desde o encontro das paralelas a tudo mais que a ciência ainda não sabe e o conhecimento esotérico corre atrás para esclarecer.
Sua irmã, Maria do Céu, é casada com um primo de minha mulher, Heliana, de onde eu me atrevo a afirmar seu quase-parentesco comigo. Acredito que ela, a irmã, não se importa, e que ele tampouco contestaria.
Se tomo como referência seu prefácio ao meu último livro de poemas, Vadândora, editora Patuá/SP, 2020, me conforto com minha alegre ousadia. Declarou ele que “só o talento não basta para a construção da riqueza poética. Você foi capaz dessa humildade que exige o trabalho. Estou orgulhoso de ser seu amigo”, (p. 15). Mais adiante o brinde afetuoso “e vamos comer feijão verde com a carne regada a manteiga de garrafa e banhada pela ternura de Heliana. Muitas bênçãos para a sua casa”, (p. 16). (Os grifos são meus).
Segue junto a dedicatória de seu livro De uma vez por todas, Civilização Brasileira/RJ, 1996, “Para o José Carlos, de minha predileção como pessoa e poeta”. Somente um especial parente e um amigo seria capaz de tornar público e expressar assim os seus sentimentos. Não menos especial foi seu raro presente a mim dado ao apresentar-me o poeta peruano Cesar Vallejo. Trata-se de seu caderno pessoal, escrito à mão, da tradução feita de vários poemas do poeta peruano publicados mais tarde pela editoria Itatiaia/BH, 2005, Cesar Vallejo, Poesia Completa.
A satisfação, o privilégio e a bonança em tê-lo por perto, mesmo longe muitas vezes em sua casa em Barreirinha no Amazonas, acompanharam e formaram um dos mais belos, inesperados e grandiosos encontros que tive um dia em minha vida. Muitas vezes pensei e me perguntei, por que justo comigo?
Mais além do quase-parentesco nasceu entre nós uma amizade poética e humana duradoura trazida da parte dele em boa medida das asas aquáticas do rio Andirá em Barreirinha que o embalava desde pequeno entre peixes, bichos, aves e povos ribeirinhos até o conhecimento e contato com a floresta e os povos originários. Sua alma veio sendo irradiada diariamente pela força e grandeza do espírito da selva em suas mais diversas manifestações. Ele deixou comigo um pouco do muito de suas impressões dessas vivências amazônicas.
Faz escuro para mim agora sem a sua presença ao alcance de qualquer encontro, seja para uma carne de sol em minha casa ou um congro rosa na casa de sua irmã, ou para apresentar um poema novo dele ou meu ou nos comunicarmos por simples mensagens. Não canto por isso, pois não haverá eco, dueto ou harmonia, especialmente alegria. Mas seus cantos vêm comigo, escuto-os ao trazê-lo de volta pela lembrança, vestido de branco como sempre gostara.
A memória não me falha, o coração mesmo sentido ainda bate com alegria ao me lembrar de sua voz guerreira, acaboclada e forte, embandeirada pelos seus gestos amazônicos, quando seus braços e mãos encantavam os ares como as baquetas de um maestro luminoso ao se expressar de forma grandiloquente sobre um belo poema que leu ou se lembrar de um rico encontro com alguém de sua simpatia e amizade.
Estive com ele várias e saudosas vezes em companhia de sua irmã e marido e Heliana, pois morávamos em Brasília e ele vivendo no Amazonas. Então, quando passava pela capital e tinha tempo na agenda nos encontrávamos os cinco. À exceção de duas vezes, uma em Nova Iorque e outra no Congresso Nacional em Brasília. Em ambos locais participou ele de cerimônias para falar sobre sua intransigente, apaixonada e aguerrida defesa da Amazônia e os cuidados que o governo brasileiro devia e deveria ter com os povos originários, a terra, a flora e a fauna.
Encontrei-me com ele no avião de ida para Nova Iorque nos anos oitenta e marcamos de nos ver dia seguinte após o evento onde iria participar. Nos vimos então na saída do local da cerimônia e conversamos sobre sua participação ao tempo em que admirávamos a grandiosidade daquela metrópole mundial. Sua simpatia, generosidade e encanto pessoal tornava o encontro despojado e divertido sem que percebêssemos o passar do tempo. O que me ficou marcado em seu jeito de ser foi sua observação que, ainda ali diante da magnífica modernidade urbana da metrópole, sentia falta de sua terra natal em seu Amazonas querido, seu lugar predileto de levar a vida.
Já no Congresso Nacional, anos após, onde ele foi igualmente levar aos parlamentares sua visão da Amazônia e seu recado de guerreiro defensor, presenciei o impacto que sua apresentação provocou na audiência. Salvas de palmas retumbaram de todos os lados festejadas com mais cumprimentos e saudações efusivas a ele ao final. De sua locução guardei seu recado primordial: se cada um de nós fizer a sua parte com persistência, coragem e fé, a Amazônia tem tudo para ser salva!
Sua confidência mais impactante deu-se em minha casa numa tarde de domingo após o almoço. Enquanto fora adido cultural do Brasil no então Chile de Allende, durante o golpe militar chefiado por Pinochet, ele chegou a ser preso por ter sido considerado subversivo como tantos outros brasileiros. De fato, ele era simpático à condução do país pelo então Presidente eleito. Em meio a vários brasileiros trancafiados no Estádio Nacional de Santiago, ele e os demais seriam fuzilados pelo pelotão dos “carabineiros”. Foi ele para o paredão logo na primeira leva chegando a ser colocado em posição. De repente, chega um militar ao chefe do fuzilamento, diz algo em seu ouvido e a operação é suspensa! Todos saem do local e vão para as celas na capital. Percebi nele emoção e olhos marejados com o relato.
Acreditava em prodígios, mas o que viam seus olhos e seus sentidos anunciavam, como o amanhecer e o entardecer na floresta, os curumins se banhando no rio, o sorriso puro da bela indígena, a imensidão mansa do Amazonas e o seu poema que vinha pronto desde seus mistérios interiores sagrados. O maior deles era o amor que lhe entrava pela pele todas as vezes que se emocionava e não saía mais. A ponto de ter me mostrado um poema seu com sua letra descrevendo o amor carnal e usando o verbo “foder”. Disse-me que era para transmitir a energia, o prazer e o laço de encantamento dos corpos.
Confidenciou-me após um prodígio diferente em sua vida. Tinha ido a um congresso internacional de poesia na Índia quando se deu o fato inusitado. Entrando no salão do evento apressou-se a saudá-lo um monge tibetano. Ele me contava o episódio sorrindo, mas se dizia arrepiado. O monge se apresenta e lhe confessa que acompanhava sua obra desde sempre que a conheceu. Diz-lhe o monge: lembra-se daquele dia em que você estava no paredão para ser morto? E que, de repente, foi interrompido o fuzilamento? Pois então, sabe o porquê da interrupção? Fui eu quem ajudei a interromper a operação! Thiago se surpreende na ocasião porque nunca tinha visto o monge e quase ninguém sabia do ocorrido com ele no Estádio Nacional. Então, acreditando, meio sem acreditar, desconfiado, agradece ao monge e ainda recebe uma bênção especial. Mas o inexplicável e inesperado ficou no ar.
Pelo passar dos dias, sua amizade perene e a impressão que sempre guardei de que ele viveria por muitos anos, me deixei levar por essa ilusão, acabei deixando o tempo passar e me arrependo de não ter tido com ele pelo menos uma foto de recordação. Os meus olhos externos perderam para os internos. Só minha memória mantém a galeria de imagens dele em dia.
Guardo de seu poema Madrugada Camponesa o destaque para o brilho incomparável dos versos que tão bem sabia sentir, conceber e construir como “agora vale a verdade, que se constrói dia a dia, feita de amor e de pão” e “lavro a luz dentro da cana, minha alma no seu pendão”.
Amigo Thiago, faça luz para que eu cante e cantemos nós!
Publicado originalmente na mídia Brasiliários e na Carta Capital na seção dos assinantes e reproduzido aqui com autorização do autor, José Carlos Peliano