Aquele garoto veio ao mundo por uma inconsistência genética ou um acaso probabilístico fosse qual fosse: era dotado de uma peculiar inteligência e curiosidade científico-filosófica desde pequeno.
O pai, provedor e sustento de necessidades básicas, não compreendia o menino e nem sequer sabia disso. Simplesmente não alcançava degraus maiores que suas pisadas e carecia de recursos para visualizá-los. Se o filho era ou não inteligente estava fora de sua alçada de compreensão, era seu filho e iria amá-lo, alimentá-lo, protegê-lo.
Que esse filho tivesse personalidade própria e indagações nem sequer lhe ocorria.
Quando, aos cinco anos, o menino perguntou:
– Pai, no escuro mais escuro, a luz está escondida ou nasce a cada vez?
Esperava uma resposta e não obteve reação alguma; olhava o pai e no rosto dele via imobilidade, a nuvem no olhar embaçado, nenhuma mudança de expressão, os lábios caídos e as orelhas imóveis, tão diferentes das suas, em pé, como pequenas antenas.
No decorrer dos anos aprendeu que não teria respostas desse ser que lhe dera a vida e que amava, mas que não poderia ser o guia de suas buscas. Na adolescência lhe ocorreu ser adotado, mas eliminou essa ideia porque os pais não teriam imaginação para a mentira.
Não deixou, entretanto, de lhe fazer perguntas. Era como se as dirigisse a uma esfinge, que as guardava no mistério para devolvê-las transformadas. O importante era perguntar. O pai, sempre impassível.
– Quando você era menino eu tinha um coração?
– Aonde vão as pessoas dos sonhos quando acordamos?
– Se alguém faz uma maldade é porque é mau ou porque a maldade choveu nele?
– Se Deus fosse Anubis, nós seríamos animais?
Pela primeira vez houve uma tênue reação, algo tinha sido ativado por uma fração de segundos, e o pai disse:
– Deus é Deus.
Era um bon chrétien.
Um conto, encantamento, e poema
Hahah! Você é cruel, Lili.
Coitados, quantos desencontros. O menino ficaria religioso?
Que lindeza de menino, Liliana. As perguntas – poemas encantam e perturbam . Ele dá bem conta do pai .
É um texto prazeroso, gostoso e faz lembrar que muitos de nós passamos por falta de respostas.
A última frase com o termo bom cristão em francês, me pareceu um pouco esnobe.
Oi Leo, fiquei também com essa dúvida e optei por deixar devido à etimologia de “cretino” no cantão francês-suíço: crétin/ crhétien/ christianus; com duplo significado.
Liliana,
Que texto gostoso de se ler! ! Quantas vezes não ficamos sem respostas…!
Parabéns!
Um abraço,
Myriam