Passei a comprar carne todos os dias. O moço chamava-se Catarino, pobrezinho, que nome! Mas era lindo como um anjo. E anjo não era. Um dia ao abrir o embrulho em casa encontrei um bife de filé mignon. Pensei que fosse engano, mas não. O presente se repetiu. Nunca toquei no assunto.
Continuar lendoORFEU E EURÍDICE, poema cheio de perguntas
e um psiu,
de Zulmara Salvador
Quantas vezes, em milênios, se perguntaram os humanos,
sempre tão intrigados:
Por que teria ele se virado?
Tudo muda com o tempo, por Lilian Kogan
Animadíssimas com o passeio de barco pelas doces águas do rio Tapajós, eu e minha amiga Silvia nos surpreendíamos a cada instante com a beleza e a exuberância da Amazônia, em Alter do chão, no Pará. Ao chegarmos ao rio Arapiuns, tive certeza de que não haveria no nosso planeta algo similar: uma praia feita de uma areia fina e clara, que é formada só na época das secas, emoldurando uma imensidão de água doce. Eu me sentia segura no frágil barquinho metálico que atracava na areia. A calma do rio me apaziguava.
Continuar lendoO Ovo da Serpente, crônica de Bettina Lenci
O fato ocorreu em nosso território: no Nordeste brasileiro. Um fato histórico. Um equívoco que pode ser interpretado, severamente, sob o olhar ético. No século passado, a recém declarada República empreende uma guerra contra seu próprio povo quando da Batalha de Canudos (1897). Ao Euclides da Cunha descrever o episódio desta guerra infame, ele embute nas entrelinhas do texto o desdém, o desconhecimento que o Brasil tem do ethos e da moris.
Continuar lendoSuspiro, crônica musical de Leo Forte
Não sei se pelos últimos acontecimentos, ou pela minha idade avançada, recordei uma conversa com minha neta.
Ela tinha oito anos e estava na fase de achar “vovô sabe tudo”. Curiosa como sempre foi, fez uma pergunta peculiar para uma criança:
– Vô, o que é suspiro?
– Ora, querida, é aquele doce, doce, doce, que sua vó faz e sua mãe só deixa você comer um pouquinho.
– Não, vô, não o doce, aquele outro negócio que a gente sente, sei lá…
Espanto, conto de Bettina Lenci
Antes de entrar no meu quarto de dormir, passo por um hallzinho que tem uma janela com duas lâminas de vidro. Uma sobe e a outra desce para um esconderijo devidamente camuflado com uma placa de madeira. Para defender-me de alguma eventual indiscrição do prédio em frente, instalei uma persiana que abro e fecho conforme o meu humor, mas…
Continuar lendo#autoraconvidada
Oito filhos, história de Eunice Maciel
Oito filhos. De quatro mulheres diferentes. Quem dos meus amigos tem oito filhos? Dos meus conhecidos? Conhecidos dos meus amigos? Nenhum. Nos dias de hoje
Continuar lendoOs olhos verdes de Copacabana,
crônica de Luciano de Castro
finalista do concurso Ruth Guimarães, da UBE
Que os cronistas vivem experiências surreais, isso é certo. Alguns as revelam, outros as escondem. Numa crônica de 1934, Humberto de Campos relatou a espirituosa conversa que tivera com um cãozinho vadio no Largo do Machado. Bem antes disso – no longínquo 1892 — Machado não conversou, mas entendeu perfeitamente a linguagem dos burros que puxavam o bonde em que viajava. Os dois muares especulavam sobre o destino que teriam com a chegada dos bondes elétricos. Isso mesmo, leitores: os beneditinos do cotidiano têm a faculdade de se comunicar com os bichos. É raro, mas acontece.
Continuar lendoO bolso, de José Carlos Peliano
Entrou apressado na garagem, chegou à porta do carro, enfiou a mão esquerda no
bolso da calça para retirar a chave, entre as chaves do escritório, a de casa e o abridor do portão automático, achou-a, pegou-a, ia retirá-la, algo a travou, percebeu que a mão não conseguia sair, achou que tinha engordado e a calça não dava mais conta de seu corpo da cintura para baixo.
Devaneios poéticos, um dia depois de Finados,
por Eder Quintão
Poesia é vaso cheio
De elocubração vazia?
Ou elocubração cheia
De sentimento vazio?
Seria ela de emoções contidas
E lindas imagens que induzem
Inebriando se cantadas ou lidas
Ou são enganos que seduzem?
LINHA DE PASSE, poema de Zulmara Salvador
Não passa a dor da mãe sem o filho.
A raiva do inimigo,
não passa.
Não passa a fome do mendigo.
O calafrio do febril,
não passa.
Não passa o medo do escuro.
Não passa a asa da borboleta pelo casulo quebrado.
O poeta morreu,
homenagem a Antônio Cícero
por Paulo Akira
O poeta morreu.
O homem no carro não sabe.
As pedras se reviram.
Quietas, aguardam: pra onde nossos significados?