blog Clube dos Escritores 50+ Luciano de Castro Tacitamente

TACITAMENTE,
crônica de Luciano de Castro

—Senhor Ronaldo, pode entrar, por gentileza.

— Ah, obrigado. Hoje foi rápido, hein!

—Sim. O Dr. Marcondes está aguardando o senhor. Segunda porta à direita.

O médico olhou pro paciente por cima dos óculos e apontou-lhe a cadeira à frente da sua mesa. Sr. Ronaldo sentou-se e entregou-lhe um envelope com os exames solicitados há duas semanas.

Dr. Marcondes rompeu o lacre do envelope e examinou minuciosamente as 12 folhas impressas. Marcou alguns valores com a caneta, sem proferir uma palavra. Sr. Ronaldo também se manteve mudo como entrara.

— Ele não falou comigo, também não vou falar com ele­—pensou.

Dr. Marcondes abriu uma gaveta e retirou um receituário branco. Baixou os olhos para a mesa, escreveu a receita e a entregou ao paciente junto com o envelope de exames. Em seguida, o médico fez um sinal de positivo com a mão direita e apontou a porta com a mão esquerda.

Sr. Ronaldo pegou a receita, os exames e saiu do consultório.

— Ele não me dirigiu a palavra. É maluco? — disse ao passar pela secretária.

­— Mas é a segunda consulta, Sr. Ronaldo. É assim mesmo. Dr. Marcondes é muito prático, sabe? Ele vai direto ao ponto, e sempre acerta no tratamento.

­­— Podia pelo menos ter falado um “boa-tarde”, um “até mais”, mas nada. Ele não me disse um A.

— É o jeito dele, Sr. Ronaldo. Mas seu tratamento vai ser um sucesso. Pode ter certeza. Deixa eu ver sua receita ­— Ah, esse remédio é excelente. Ele passou prá minha mãe. Foi batata!

­— Vamos agendar seu retorno. Olha só… o tratamento do senhor vai durar 14 dias. Vou agendar na próxima vaga disponível. Já estou olhando aqui a agenda dele.

— Ele não me falou o meu problema, não me explicou nada.

— Deixa eu ver aqui os seus exames ­­— Hummm… ah, é só uma infecçãozinha urinária. Vai ser tranquilo. O senhor está sentindo dor ao urinar?

­— Sim, por isso vim aqui.

­— Então está tudo certo. O senhor já está medicado. É só seguir direitinho a receita.

— Eu não entendo nada do que está escrito aí.

­— Espera um pouco que eu vou transcrever pro senhor. Letra de médico é fogo! O senhor sabe como é! Pronto, tá aqui. Pra comprar na farmácia, tem que levar a receita do doutor, certo? A minha é só pro senhor entender direitinho. Tá tudo bem explicado aí. Tem que tomar os comprimidos de 12 em 12 horas, no horário certinho. Outra coisa: não tome com o estômago vazio, se não dá queimação.

— Agora entendi.

— Vamos agendar então?

— Você tem um calendário aí? Após 14 dias, não é? Você tem horário no dia 28? É uma terça-feira pela manhã.

­­— Infelizmente não. O Dr. Marcondes não atende consultas nas terças pela manhã. Ele tem centro cirúrgico. Opera muito, sabe? Na área dele, não tem nenhum igual.

— E você, Stefany, estará aqui?

— Ah, claro, Sr. Ronaldo. Eu trabalho todos os dias aqui, de segunda a sexta, manhã e tarde. Chego em casa à noite ainda tenho que fazer janta. Vida dura!

— Então vai dar certo. Eu quero marcar meu retorno é com você mesmo. Muito obrigado, Stefany, você me atendeu muito bem. Até dia 28, então.

*Goiânia, novembro/2020

Crônica publicada originalmente na Revista LiteraLivre – Mar./Abr. de 2021

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13 comentários

  1. Luciano: sou médico mas quem receita lá em casa é minha mulher…. que é psicóloga… mas de letra ótima ! Porém sou eu que recebo o dinheiro da consulta. Se pagassem a ela seria denunciada por prática ilegal da profissão…. Ninguém sabe que exploro psicólogas…

    1. Prezado Éder, estou certo de que a sua assistente psicóloga produz ótimas e bem explicadas prescrições. Abraço!

  2. Luciano eu já me encontrei muitas vezes nesta situação … mas nem sempre com secretarias tão dispostas a ajudar … Adorei o humor …Este médico de via trabalhar para o meu convênio da Prevent Sênior (que de senior só ficou com o nome) que exige que as consultas dos médicos não ultrapassem 15 minutos. Iam adorar o Dr Marcondes …

    1. Pois é, Blanche, por mais absurda que pareça, essa situação não é incomum. Inclusive, escrevi a crônica baseada num relato de um amigo que viveu uma experiência parecida numa consulta médica. Dr. Marcondes parece ser um tipo comum.
      Abraço!

    2. A crônica de Luciano de Castro nos oferece leveza para esses tempos sombrios, mas sem perder o potencial de reflexão que o momento exige.

  3. Adorei o humor embutido ou quase expresso. Sendo dentista tenho que concordar que na minha área qualquer semelhança não é mera coincidência, o que poderia ser triste ou trágico…Mas fico com a alegria de ter lido um texto claro, tranquilo e instigante. Aguça minha vontade de ler mais crônicas suas!!!

    1. Muito obrigado, Carla. Espero que você, leitora aplicada, leia e aprecie também a crônicas dos ” Óculos do Poeta”.

  4. Ansiosa para estar com meu exemplar em mãos e desfrutar de suas crônicas sempre tão impecáveis, divertidas e no ponto certo da crítica contemporânea. Sucesso Mestre Luciano!

  5. Desse jeito!!! Infelizmente isso ocorre bastante. Os médicos, não todos, gostam mesmo é de cirurgia. O texto é maravilhoso. Parabéns ao autor.

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