Logo cedo, ali pelos dezoito anos, foi selecionado entre vários meninos para ser auxiliar de sapateiro.
Parecia um emprego simples, mas não era. A sapataria era de luxo e pagava três vezes mais do que qualquer outra. O negócio era sólido como uma rocha e prometia vida e velhice seguras.
Parecia pouco para o menino Eustáquio que gostava de estudar, ler e sonhar. Feitas as contas, o emprego na sapataria tiraria a família das dificuldades financeiras. Hesitou, mas a realidade venceu.
Lá ia Eustáquio para o trabalho, sempre pontual e correto, encarregado de bater os pregos nos saltos, fazia-o como ninguém. Foi desenvolvendo uma grande precisão. Bastavam duas marteladas e o prego se acomodava perfeitamente.
O dinheiro era bom e permitia que se desse a alguns luxos, comprava livros e revistas e usava todo o seu tempo livre para ler e sonhar. Foi acumulando uma enorme cultura, era procurado para trocar ideias sobre assuntos complexos da vida e da alma. Admirado pela comunidade, se satisfazia com a capacidade de ver além.
Nos fins de semana se reunia com os amigos e tinha sempre uma palavra ou um pensamento para emprestar. Era procurado pela sua sabedoria. Promoveu inspiração para muitos a sua volta.
Segunda-feira estava lá, batendo os pregos. Seu Praxedes, o gerente, achava um desperdício alguém tão prendado fazendo tão pouco.
Havia espaço para o progresso, poderia cortar o couro, ajustar o sapato nos pés endinheirados, vender e até criar modelos. Nada disso queria, estava contente com as promoções anuais e por se considerar o batedor de pregos mais bem pago do país.
Um dia percebeu um defeito no lote de pregos, entortavam na primeira martelada, testou, pensou, levou para a chefia.
Aquilo não era possível! Disseram todos, só se trabalhava com os melhores fornecedores! Eustáquio provou que os pregos não eram os mesmos e essa ficou sendo a sua grande contribuição para a fábrica. Parecia pouco mas evitou que a marca comprometesse a qualidade do seu produto.
Para Eustáquio era claro que a sapataria era a realidade e não queria nada a mais que o sustento dos devaneios.
Como os que não conseguem viver seus sonhos, Eustáquio, confundia os sonhos dos outros com os seus. Virou um patrocinador. Investiu no desejo da esposa que era ter uma loja de doces, ajudou o filho a ser trapezista.
A esposa faliu, o menino se casou com a filha do dono do circo e em seguida separou.
O tempo passou e já nem era claro o que era sonho. Fechado no seu quarto de livros se comprazia a pensar, ler, sonhar….
Um dia a luz começou a piscar e o tempo alternava entre claro e escuro. Um pouco conseguia ler e sonhar, outro tanto vinha o nada.
Em algum momento a clareza foi embora e sonhar deixou de fazer sentido.
Restava abrir a janela e sentir a brisa do mar.
Ah, os sonhos….
Maravilhoso, li várias vezes.
Ahh, os sonhos dos outros misturados aos nossos, há que se prestar muita atenção
Leonardo,
gostei imensamente da cadencia dada ao seu texto Sonhos. Sabe, acho que a realidade do sapateiro era o sonho pregado nos sapatos.
Adorei o sonho da esposa falida e da filha separada. Este, para mim, é claro, é o sonho tornado sapato, simplesmente assim: a realidade.
Acredito que sonhar é a própria realidade!**
** como já interpretou Freud: os sonhos nos contam a realidade que vivemos dentro de nós!
Sem clareza, nem sonhos, que vida essa do Eustáquio, hein?!!! Muito bom esse conto, Leonardo, gostei de ler.
Um conto delicado, comovente, delicioso! Parabéns Leonardo Quindere!
Parabens Leonardo. Gostei muito do conto. Gostei do ritmo da história. Talvez a pregação de pregos fosse um trabalho modesto, mesmo se bem pago, mas permitia a Eustáquio voar alto e livre para dimensões que só os sonhos permitem alcançar.. E ele ainda ficou sábio com as viagens e leituras!