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SONHO DE SOLIDÃO, por Bettina Lenci

Hermínia é uma mulher atraente. Quando jovem, chamava a atenção por seus olhos verdes, abundante cabeleira ruiva e corpo bem-feito. Porém não explorava esses atributos em seu benefício. Tímida e recatada, até conhecer J.A. No dia em que, sem entender bem, deixou que ele fosse o primeiro homem a lhe indicar que fazer sexo pode doer, sentiu-se vazia. Ele a fez conhecer o desamparo de um corpo ausente. Ao ouvir o som agudo do prazer de J.A., calou-se. O silêncio que se seguiu assegurou-lhe que, em um canto da sua alma, a solidão tomou lugar.

Esta foi a última vez que fez sexo com um homem!

Anos depois, em um encontro de ex-alunos, ao reconhecer M.A., uma de suas colegas, algo a despertou de seu torpor sexual: M.A era uma garota loira, gordinha e mais baixa do que ela, mas tornou-se uma mulher exuberante, morena de sol, cujas mãos expressavam cada palavra correspondente ao gesto, espalhando luz e riso à sua volta. Não se lembrava da cor dos seus olhos, mas, rapidamente, constatou serem castanhos claros e que sorriam para ela.

Em um final de semana prolongado. M.A convidou Hermínia para passar uns dias na praia, praticamente decretando que ela precisava tomar um pouco de sol.

E foi assim, ao cair da tarde de um dos dias, após uma praia ensolarada e vários mergulhos, que M.A, cabelos soltos e lavados, cheirando a sabonete de lavanda, vestida com um kaftan branco, transparente, aproximou-se de Hermínia que, de olhos cerrados descansava, e beijou-a na boca. Paralisada, porém sem vontade de rejeitar a sensação que lhe causara a ousadia da amiga, correspondeu, de mansinho, timidamente.

A partir deste momento, criaram laços afetivos e amorosos fortes, coroados com uma intensa e sintonizada relação sexual. Foram anos, para Hermínia, de constante despertar para um universo repleto de possibilidades de viver e dividir um amor possível regado de prazer suave. Cuidaram uma da outra com devota dedicação. Hermínia, silenciosamente agradecia a M.A por tudo que ela lhe havia ensinado sobre cozinhar, amar, cuidar, rir e chorar.

No rastro vazio que se descortinou após a morte de M.A, Hermínia, sem família e filhos, cansada da vida, sem saber como recuperar-se do vácuo abissal da perda, decidiu desterrar-se para o Lar São Judas Tadeu.

Ninguém, nunca mais, a conduziria ao lugar escuro onde jaz a inconsciência, o gozo insuportável de uma morte em vida! 

Por ser a mais jovem dos hóspedes do São Judas, tinha permissão de passear pelo parque e sentar-se na cadeira de balanço do bem cuidado jardim. Lá ficava por horas, ao entardecer. Lia, e, entre uma página e outra, cochilava.

Num desses dias em que o outono desponta com suas folhas avermelhadas e a brisa se torna mais fria, um cochilo a envolveu e ela sonhou. Sonhou que M.A atravessava o saguão do asilo apoiada em sua bengala, ainda muito linda e gesticulando para as moças da recepção do Lar São Judas. A esta cena, segue-se outra na qual Hermínia e M.A. estão abraçadas sobre a cama no frugal quarto do seu refúgio, as cortinas floridas cerradas, o quarto na penumbra. M.A abraçava-a intensa e carinhosamente com seu corpo pesado e alma leve. As peles em liso contato, os pelos pubianos macios, a cabeça repousando entre os seios fartos de M.A. 

Acorda sobressaltada e dá-se conta da sua imensurável solidão: uma arapuca que a remete, involuntariamente, ao desejo do primeiro beijo naquele longínquo dia da praia e à imagem do kaftan de M.A de algodão transparente e nele impresso golfinhos coloridos. Sente um ardor no sexo e o arrepio lhe toma o corpo, a boca seca e o coração acelerado. Sabe da dor da ausência que teria que superar, mas até hoje não dominara. Ao contrário parecia que se densificava a cada acordar do cochilo no jardim do asilo. 

Hermínia aperta o xale em volta dos ombros e passa pela recepção do asilo, a mesma que, no sonho, M.A. atravessou apoiada na bengala. Segue pelo corredor até chegar à porta de vidro da sala de jantar. Abre-a, as mesas estão ocupadas, senta-se, sozinha, em um canto. Era hora do jantar. Sopinha de legumes, um pãozinho branco, uma fatia de queijo minas e goiabada de sobremesa. Hermínia não costuma passar para a sala de televisão como seus colegas do lar. Retira-se depois do jantar para o quarto frugal, as cortinas floridas dependuradas de cada lado, as venezianas ainda por fechar. Deseja sonhar com M.A novamente!

2 comentários

  1. Obrigada Carlos,

    É com gratidão que recebo algum comentário.
    Tenho me afastado um tanto do clube pois debruçada sobre a
    História do Brasil e sobre o qual escrevo atualmente. Uma escrita inventada mas que nao deixa
    de anotar fatos perturbadores da nossa história. A procura é entender este nosso continente, incluso,
    claro, o Brasil.
    Estudá-lo dá sentido ao que vivemos hoje por aqui! Mas essa é outra história!
    Um abraço e obrigada!

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