#autorconvidado
Sílvia Ancona Lopez: Senta aí, João!

Senta aí João, enquanto faço o café. A cozinha não está muito bonita, não mudou desde quando…pensava que quando você viesse eu poderia te receber em uma cozinha nova…mas, é o mesmo velho fogão, a geladeira meio capenga, os móveis descascando, mas está vendo? as crianças disseram: sua cozinha tá feia vó. Podemos enfeitar? E puseram esses adesivos todos, cobrindo os defeitos. Ficou bonito, não é?  Eu gostei. Prá dizer a verdade quase chorei quando vi. Achei tão bonito o cuidado deles comigo. Estão lindos os teus netos…você nem viu crescer, mas pode sentir orgulho: são estudiosos, carinhosos, sempre que podem me visitam. Agora um pouco menos. Tem os amigos, os estudos, as obrigações. Eles são minha alegria, meu amor.

Senta aí, João, pode deixar que eu pego o pó. Comprei esse pote novo. Diz aqui: hermeticamente fechado. Parece que o café fica mais gostoso, conserva o sabor, o perfume. Às vezes à tarde, quando sobra um tempo, faço um café para mim; sento aqui na cozinha e tomo bem devagar apreciando. Se a tarde está bonita a claridade que entra pela janela deixa uma luminosidade dourada, que enfeita meus azulejos. Tem dia que me perco olhando o céu, as nuvens branquinhas… fico adivinhando as formas, nem vejo o tempo passar. Sinto alguma coisa, assim, uma nostalgia e penso que eu gostaria de pegar um avião e conhecer outros lugares. Ir para Paris. Deve ser lindo Paris! Claro que eu conheço pela televisão, pelas revistas, mas às  vezes gostaria de ir até lá e tomar meu café naquelas mesinhas que ficam na calçada. Quando escurece esqueço tudo isso, vou assistir minha novela, fazer meu tricô e me sinto assim… quase feliz. Estou bem, eu estou bem. Os filhos andam muito ocupados, batalhando. A vida não é fácil, mas me telefonam…. algumas vezes passam por aqui correndo para ver como estou e nunca, nunca, esqueceram o meu aniversário. Aí trazem uma flor, às vezes um perfume. Sempre faço um bolo, as crianças cantam parabéns e é um dia muito feliz.

Eu queria estar mais nova e mais bonita se um dia você aparecesse por aqui, só que o tempo passa, fazer o quê, não é? Tem jeito não. De resto estou como sempre, trabalhando na mesma escola só que um pouco cansada. Com a idade, dar aula à noite não é fácil, mas graças a Deus, tenho meu trabalho que me ocupa, me dá satisfação e o meu salário, que não é muito, me sustenta e às vezes até dá para ajudar os meninos em alguma precisão.

Toda sexta à noite, jogo carta com a Maria José, a Dinha e a Luiza. Continuo muito distraída; só um pouquinho melhor e quando minha parceira é a Dinha chegamos a ganhar de vez em quando. Nesses encontros rimos muito, falamos da vida. Ninguém reclama. Somos umas velhotas alegres que não se queixam das dores, das decepções, da solidão…vez ou outra vamos ao cinema, mas é difícil. Gosto de assistir filme romântico que faça chorar e eu aí choro, choro, choro e saio bem levinha. Elas são mais de igreja do que eu, só que eu rezo todo dia e agradeço muito tudo que consegui, agradeço a força que Deus me deu para passar pelas dificuldades e peço proteção para todos. Já rezei muito por você também. Não levanta não, João. Senta aí, já vou pegar as xícaras e servir o café. Tenho lido muito; é a minha maior distração. Leio de tudo e lendo esqueço da vida, é como fazer uma viagem para lugares distantes. Invejo os escritores que sabem descrever os sentimentos e encontro nos livros a forma de dizer aquilo que sinto e não sei como explicar. Não tem nada melhor do que um bom livro. O que não aprendo mesmo, tenho a maior dificuldade, é com o computador. Essa linguagem da informática me deixa louca. Às vezes vejo os meninos conversando e é como se fosse em outra língua; não entendo nada! Nessa hora tenho medo de ficar fora do mundo. Ainda vou enfrentar esse problema e fazer um curso de computação. Tenho bastante energia para isso. Sabe, melhorei muito na cozinha. Meu feijão com arroz agora é uma delícia e tenho o maior prazer em descobrir uma receita nova. Quando as crianças vem almoçar aqui, sempre invento uma novidade e elas adoram meu bolo de banana! O café está pronto! Senta aí, João, deixa que eu mesma sirvo. Vou sentar, também, e me diga: por que você veio aqui, João?

Por que você veio, João?

Por que eu vim? Porque eu precisava. Vim arrastando os pés, com medo, o coração batendo descompassado. Vim pensando que não teria coragem de tocar a campainha, que você ia me bater a porta na cara, que não ia me receber. Vim segurando essas flores, sem graça, sem nem mesmo saber como segurar o maço…nunca fui de flor… e hoje me arrependo. Arrependo, sim, porque você ia gostar de receber uma flor no seu aniversário ou no dia que os meninos nasceram ou no dia das mães. Mas eu não sabia ter esses carinhos, estava sempre com a cabeça distante, pensando no trabalho…pensando em mudar de vida em sair por aí….tanta coisa! 

Vim aqui Maria,  porque você tem alguma coisa que eu preciso. É alguma coisa parecida com abraço de mãe, com aconchego, com acolhimento de amiga e de irmã. É a mulher que eu tanto quis, que me fazia sorrir só de pensar no seu jeito de estar sempre alegre cantarolando. É, também, esse cheiro de café, o calor dessa cozinha, essa claridade entrando pela janela e a vontade que me dá de deitar a cabeça no seu colo e contar as aventura que passei, o mundão que visitei e o tanto que sofri. Voltei para contar as guerras que lutei e perdi e o pouco que ganhei. Quero falar olhando nos seus olhos e vendo o interesse neles, como você tinha quando eu contava do meu trabalho na empresa, da implicância do gerente, das risadas com os colegas, das fofocas das secretárias. E como era bom quando eu vinha contente depois de alguma venda grande! Você me olhava com os olhos brilhando, já pensando no que poderíamos comprar com aquele dinheirinho a mais, me olhava como seu eu fosse um sucesso, o homem mais importante do mundo e parecia ter orgulho de mim. 

Me lembro de uma noite, sentado nessa mesa, enquanto você fazia o café como hoje, em que tive medo de te perder. Lembro que pedi: “Promete que você nunca vai me deixar”. Você me olhou assustada e disse que não; que nunca ia me deixar e disse, também, que nunca eu tinha olhado para você daquele jeito e acariciou meu rosto, quase chorando de felicidade. Mas, naquele dia, Maria, percebo que falei pedindo socorro, porque eu senti que estava começando a ir embora. Queria que você não deixasse, queria que me segurasse, que me explicasse que o mundo lá fora, que estava me chamando, não tinha nada de novo para me oferecer, que tudo que eu queria estava aqui mesmo, apesar do barulho dos meninos, das contas no fim do mês, dos nossos maus humores. Queria que você me avisasse que eu não ia encontrar por aí seios como os seus. Que saudades, Maria dos teus seios!  Estamos velhos, é verdade,mas nunca deixe de lembrar, de sentir nas minhas mãos. Você engordou, está com os cabelos grisalhos, parece um pouco cansada, mas o que eu vejo é aquela moça que amei tanto que enrolava as pernas nas minhas, que devagar foi perdendo a vergonha e aprendendo a amar. 

Seus olhos, seu jeito de ir de um lado para o outro na cozinha são os mesmos de sempre. Até esse açucareiro parece o mesmo, só tem uma lasca pequena aqui na beirada. Olho em volta e vejo os móveis um pouco velhos, a geladeira com a porta precisando ajustar, o fogão bastante usado, mas aqui é um mundo, cheio de lembranças e cheio de vida. Cada almoço de domingo, cada bolo de aniversário, parece ter deixado uma marca. Marca de vida e de amor. Mas, como eu, você também deve ter chorado, Maria, de medo de enfrentar a vida sozinha, de solidão, de não ter as respostas para as suas perguntas. Por que eu fui embora….? Nem eu sei!Talvez  porque eu tivesse sonhos de menino e imaginasse minha vida tão diferente! Nunca deixei de te amar, não me olhe assim, é verdade, mas não era suficiente. Eu precisava de alguma coisa mais. 

Você me fala nos netos…mas eu nem vi crescer os meninos! No seu olhar vejo um pouco de tristeza, mas sinto você preenchida pelo carinho dos filhos, dos netos, pelas risadas com as suas amigas. Que importância tem por onde andei se sinto em você a paz que invejo e que ainda não encontrei? Parecia que eu tinha tanto para lhe contar….

Não sei bem o que vim buscar aqui, Maria. Não sei se é perdão, se é matar um pouco da saudade que tenho acumulada, para poder continuar. Não sei se é cansaço da dureza da vida, se é o vazio que tem dentro de mim…. Me deixa ficar um pouco aqui, Maria….e, por favor, me dá outra xícara de café.

18 comentários

  1. Muito linda história.
    Quanta gente não queria passar um café fresquinho e reencontrar um amor pra lembrar da vida que se foi, tão breve, no tempo de passar um café. Me emocionou muito. Li tomando café. Sozinha…

  2. História delicadissima. Muito sensível! A autora realmente descreve um encontro de todos nós da 3a idade. Adorei, chorei.

  3. Amei esse conto! Mostra a criatividade e a sensibilidade da autora. Sinto-me orgulhosa do sucesso de uma colega do curso de Psicologia da PUC. Ela sempre foi muito atenciosa e amiga de todos os colegas Seu conto expressa sua compreensão da alma humana, dos desencontros e encontros que todos vivemos ao longo de nossas vidas.

  4. Tive o imenso privilégio de ser aluno dessa profissional espetacular! Sem dúvidas, proporciona as pessoas que a rodeiam, ter um aprendizado fantástico com um valor inestimável. A profissional extremamente humanizada.

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