No metrô, no mesmo trem, na mesma hora, oito da manhã ou seis da tarde.
Escolhi falar com ela por causa dos sapatos. Tenho mania de ficar olhando os sapatos das pessoas, principalmente os das mulheres. Os dela me chamaram a atenção. Olho os pés antes de qualquer coisa. Vi um par de pés calçados com sapatinhos prateados em pleno dia de chuva. Estavam bem conservados, secos e brilhantes. Os pés juntinhos, expostos como numa vitrine, luziam no meio de sapatos escuros, encharcados, entortados, velhos, desbeiçados.
No outro dia eram sapatinhos de camurça pretos, difícil achar em lojas que frequento. O salto, uma pequena superfície que vai aumentando ao longo da sola – chamam da anabela, mas anabela eram os que minha avó usava, sapatos de velha. O dela não, anabela atualizado. Para fazer contato comecei a caprichar nos meus. Tenho muitos, mas agora não posso usar saltos, nem caberia no metrô, longas plataformas; antigamente conseguia andar com elegância de salto alto, até descer escadas sem segurar no corrimão, cabeça alta, olhando para frente. Hoje procuro a praticidade sem me entregar àqueles sapatões horríveis que mulheres da minha idade usam: baixos, largos, de couro mole, os pés se espalham de tal forma que parecem bichos cansados. Sinalizam, não estou à procura de homem algum.
Os de minha passageira, ao contrário, sinalizam: estou sozinha à procura de companhia.
Ontem ela calçava os mesmos sapatinhos prateados, mas com um laço azul marinho. Muito elegante.
Resolvi falar com ela às 6 horas da tarde, provavelmente estaria voltando do trabalho, teríamos mais tempo para conversar.
Sentei-me ao seu lado e depois de algumas estações e hesitações falei, desculpe, boa tarde. Boa tarde, respondeu. Sou psicanalista e escritora e estou recolhendo depoimentos de pessoas…De pessoas o quê? ela perguntou. De pessoas que parecem morar sozinhas. Como você sabe que moro sozinha? Foi um palpite. Como assim? Só mulheres que moram sozinhas têm essa elegância de se calçar como você. Ela sorriu, tinha acertado na vaidade. Interessante, nunca tinha pensado nisso. Mas tem muita mulher que mora sozinha e não capricha no sapato. Mas quem capricha no sapato do jeito que você faz, é porque mora sozinha. Vou ter que descer na próxima estação. Ah… que pena, eu disse, queria conversar. Em que estação você embarca, a que horas? Às 5:15 na Praça da Sé. Então amanhã também vou embarcar lá. Costumo pegar o terceiro trem. Combinado.
Como é sua vida, como foi sua vida, profissão, se já amou…
Sapatinhos vermelhos, saltos finos, não muito altos, bem decotados, o colo do pé aparecia velado por uma meia de seda rosada.
Abaixou a cabeça, sorriu. Trabalhei em um escritório de advocacia; levava e trazia documentos para o Fórum. Um escritório grande, homens e mulheres de terninhos bem arrumados, as mulheres de salto alto, elegantes, eu ficava olhando, queria ser como elas….como elas, que eram magras, entendeu? Eu pesava 50 quilos a mais. Não parece que você foi gorda! Quer ver? Cuidadosamente tirou um maço de fotos da bolsa, escolheu três, devagar. Os movimentos atentos para não deixar cair nenhuma. Vi uma garota obesa, cabelo preso de qualquer jeito, calças compridas apertadas, camisa branca com os botões prestes a estourar, em uma mão, um cachorro quente, na outra, uma coca cola. Pele feia, bochechas estufadas, olhos sumidos no rosto de lua. Viu? Eu era assim. Guardou as fotos na bolsa imensa. Por que você anda com essas fotos? Para não esquecer. Sorriu. Vou ter que descer. Amanhã no mesmo lugar?
Eu era muito triste, muito infeliz. Comia e dormia e nas outras horas trabalhava. Não subia de função, com essa cara, esse corpo, era muito deprimida. Não conseguia olhar no espelho. Um dia, no ônibus, um moço olhou para mim. Fiquei com tanta vergonha, queria sumir, não queria que ele me visse. Saí do ônibus antes do meu ponto, fugi. Chorei até chegar em casa. Resolvi que ia mudar. Entrei em dieta, perdi 50 quilos em um ano. Foi difícil, foi difícil, chorava de fome, tive várias recaídas, vários finais de semana passei o dia inteiro comendo e dormindo. Depois descobri que podia comer e vomitar. Grande solução, pois não engordava. Vou ter que descer na próxima parada. Amanhã continuamos?
Sapatinhos verdes, meias negras, bonito, extravagante.
Comi e vomitei até que encontrei Alaor, meu primeiro namorado. De um dia para o outro parei de vomitar e passei a comer menos. Já tinha emagrecido uns trinta quilos, estava bem mais bonita. Foi quando começou a mania dos sapatos. Ele tinha fixação por pé. Antes do primeiro beijo me deu um par de sapatos vermelhos. Fiquei espantada, mas adorei. Quando saímos a primeira vez, transamos, nua e de sandálias. Achei estranho, nunca tinha ouvido falar, mas depois gostei. Esse caso durou uns seis meses e nesse tempo ganhei uns 10 pares de sapato. Ele me ensinou a cuidar dos pés, dizia que são misteriosos, sustentam o corpo da gente, nos levam para onde queremos, por isso, necessitam de cuidado e de carinho. Olha aí, minha estação.
Quando ele foi embora, voltaram os ataques, comecei a comer e a vomitar novamente, mas aí consegui segurar, sabe como? Comecei eu a comprar sapatos, um mais lindo do que o outro, meus pés passaram a ser minha companhia. Cremes, esmaltes, massagens, conversas, altas conversas, namorava com meus pés, tudo o que tinha maltratado meu corpo era dedicado agora aos cuidados deles. Até que conheci outro homem, aqui mesmo, no trem. Miguel. Olhou para os meus pés, vi que não ficou atraído, mas eu me interessei por ele. Cruzei e descruzei as pernas, de um jeito que mulher sabe fazer, sabe como é? Ela cruzou uma perna em cima da outra, balançou a de cima adornada com meia de renda, suspirou. Em seguida descruzou-a bem devagar, e colocou a que estava em baixo, cruzada sobre a outra. Deu mais um leve suspiro, ajeitou os quadris e olhou para mim. Senti um perfume delicado. Vou descer agora.
Com Miguel minha coleção aumentou, ele entrou na minha, transávamos de sapatos altos todas as vezes. Para resumir, tenho uns 50 pares, cada homem que surge, me presenteia. Novamente senti um aroma de perfume, desta vez mais acentuado a cada vez que cruzava e descruzava as pernas. Ajeitava os quadris, suspirava, olhava para mim, tive vontade de lhe oferecer um par de sapatos, não, dois ou três. Qual o seu número? Número do quê? Quanto você calça? Ela sorriu, não respondeu. Tinha visto uns belíssimos na tarde anterior ao descer do trem. Pensei nela, ficaria feliz e linda de sapatos novos, valorizaria sua coleção.
No dia seguinte resolvi calçar sapatos de saltos altos e meias cor cinza esfumaçada. Queria que ela visse: eu também sabia apreciar esses objetos de luxo. Ficou surpresa. Rimos as duas, você também gosta de sapatos?! Adoro, disse eu, também tenho quase 50 pares. E por que não contou antes? Bem, a entrevistada era você. Rimos novamente, sem motivo, daquilo que as mulheres riem sem motivo. Fiquei com vontade de lhe presentear com um par de sapatos maravilhosos que vi ontem, ao sair do trem, aliás, dois pares, uma sandália alta e um escarpin. Rimos novamente. Você quer me visitar, ver minha coleção? Quero. Vou descer agora, aproximou-se, nos despedimos com um beijinho pela primeira vez. Novamente o perfume, mais acentuado, misturado com cheiro de corpo. Amanhã? Amanhã.
No dia seguinte, lá estava eu, novamente de saltos altos, um pacote de sandálias para ela, o coração acelerado. Ela não veio, não estava no terceiro vagão. Fiquei agitada, caminhei depressa, quase correndo, procurei no segundo e no quarto vagões, aflita que o trem fosse embora. As portas se fecharam, ela não estava! O que tinha acontecido? Nem sabia o seu nome! No dia seguinte e nas semanas seguintes voltei à mesma estação onde sempre embarcava para encontrá-la. Refazia o pacote todos os dias, trocava o papel de embrulho, arrumava a fita do presente.
As sandálias altas, vermelhas estão em minha sala, em uma pequena redoma de vidro que comprei exatamente para isso.
Voltei a fumar.
Sylvia das letras! Viva! veja bem! primeiras impressões! sua publicação é, entre tantas outras coisas, uma alusão à rotina dos consultórios psicanalíticos! São sessões de análise húngara no metrô! O próprio trem – em si – é metáfora [que transporta: o passageiro; o paciente; os personagens; o leitor… pelos trilhos dum processo em que a analista é cooptada! por isso ferencziana]!
Subitamente, nessa pequena saga, um espelho se constitui.
E então não sabemos mais quem é entrevistadora e quem é entrevistada: as vozes se misturam.
E, assim como reconheço um texto de Paulo Akira, mesmo que ele não assine [pois, carrega uma marca], enxergo também um léxico loebiano! Em suas produções, Loeb cria um campo erotizado. Cheio de sensualidades. Território de desejos e fetiches [e espelhos].
Em tempo: O escrito aqui é também [penso eu!] uma derivação de ‘sinal fechado’ de Chico!
E, assim, é triste, um quase encontro [desencontro, portanto].
A paciente some – e deixa a analista a ver navios [trens – metáforas!].
Que pena que acaba!
zzzlot,
O leitor atento amplia a narrativa do escritor. O leitor atento, é co-escritor, mesmo que não saiba ou pretenda tal lugar.
Para o escritor, o leitor atento é um presente.
Você , zzzlot, é o leitor que todo escritor almeja.
Sylvia, querida,
A idéia do sapato vermelho ( aliás v. já escreveu sobre um sapato perdido na rua), é forte principalmente
por ele não chegar ao seu destino depois de comprado com amorosidade e expectativa. O contraste da frustração com a cor quente cria um” choque térmico” no texto. Um momento triste .
Nao saberia ver o fundo psicanalítico, o espelho – quanto mais húngaro- do dialogo, mas muito presente a sensualidade das meias coloridas e sapatos diferentes a cada dia de conversa como se, cada dia, do dia a dia, fosse diferente apenas por usar a cada dia um sapato diferente. Talvez o vermelho teria sido o ultimo a ser trocado!
(Aurea me me ensinou, com este seu texto, que é preciso “escorregar ” entre as linhas para se tornar um bom leitor!) beijo sempre B
Bettina, obrigada pelo comentário.
É sempre bom saber que alguém leu nosso texto e se deu ao trabalho de falar algumas palavras.
Gostei do choque térmico entre a cor vermelha e a frustração do encontro. Você falou em momento triste. Restou a fantasia…
Beijo,
Sylvia
Sylvia,
adorei tanto seu conto, que delicia essa historia e o nocaute do final, lindo.
Onde tem mais historias suas?
beijos
Elisa
Elisa,
Que boa surpresa encontrar você aqui!
Obrigada pelo comentário.
Amanhã vou postar mais uma história no meu face; posso compartilhar com você?
Beijo,
Sylvia