Blog Clube dos Escritores Liliana Wahba Safira

SAFIRA,
por Liliana Wahba

A mãe, uma cadela de pelagem espessa e brilhante preta, com manchas amarelas da raça. Herdou do progenitor o tamanho, pouco usual em fêmeas, e, da progenitora, a doçura. Intimidava quem a visse, gigante, assustadora Rottweiler. Era, entretanto, dócil e amorosa, crianças subiam nela, pequenos se aconchegavam e adormeciam no macio, e ela esperava pacientemente que acordassem. Essa mansidão desaparecia quando, alerta, atenta, no portão vigiava quem se aproximasse de seus donos na saída e entrada de modo suspeito. Bastava-lhe mostrar os dentes e eriçar as orelhas para afastar.

Com três anos, o cruzamento, o noivo escolhido pelo belo porte, estirpe e coragem: teriam lindos filhotes. Gravidez normal, chegou o esperado dia, nasceriam uns sete pela previsão. Primeiras contrações, sua reação foi correr no quintal e dar um grito ao expelir algo para ela estranho, sabia instintivamente o quanto a maternidade é assustadora. Afastou-se do filhote envolto em placenta, e fizemos um ritual de aproximação, cheira, é seu bebê, você sabe cuidar dele, não tema … Devagar, cheirou, lambeu, acolheu.

Foi conduzida ao ninho com o filhote em panos, e compreendeu; ali ficou horas parindo um a um. No sétimo, todos vivos e ela bem, alegria geral. Estava ainda inquieta, viriam mais dois na madrugada. Muitos para uma primeira vez. Assumiu a maternidade com zelo; era incrível que, enorme como era, tivesse a delicadeza necessária para não esmagar os pequenos que mamavam com vigor. O último foi deixado de lado, era fraco e tinha espasmos. A natureza o rejeitou, morreu em horas.

Sugavam o leite com avidez e os maiores deviam ser afastados para revezar, ela alimentava todos amorosamente, lambendo, trazendo perto. Um lamentável e chocante acidente levou dois dos mais fortes e gordinhos. Sem ser culpada esmagou-os por ficarem embaixo de jornal amassado, não viu. Depois nos ensinaram que jornal devia ser colocado com fita crepe para ficar liso. Ela notou? Ficou triste? Não podia se permitir o luto, seis era bastante para alimentar.

Eram perfeitos. Preocupados, vimos que uma pequena ficava de lado, e apesar de colocada nas tetas, logo outro a tirava de lá, a força da mamada era fraca. Ela era linda, uma miniatura, tônus mantido, proporções harmoniosas. Tivemos que afastar e tentar alimentar com conta-gotas. Arriscado, pois quando são tão pequenos engasgam. A veterinária disse que se sobrevivesse teria um desenvolvimento normal, diferente do que nasceu com defeito.

Fiz um berço ao lado de minha cama, caixa envernizada com flores desenhadas, panos de flanela coloridos, uma lâmpada de luz para emitir calor. Apaixonei-me por ela, os olhos fechados se entreabriam e um azul celeste fulgurava refletido nos meus, admirava amorosamente seus contornos, sua pelagem; era única, batizei-a Safira, joia entre joias.  

Três dias com conta-gotas de hora em hora e leite na proporção que ensinaram, a cabecinha mantida em posição para trás, a expectativa, o amor crescente; viva, Safira, será uma companheira, vamos ao encontro do mundo. Preciosa Safira, fique conosco. Cabecinha mole; entrou líquido no pulmão, não pode ser reanimada. Promessa iluminada, não vingou.

Safira na palma da mão, corpinho quente ainda, em posição encolhida como que voltando para um nascimento que não iria ocorrer. O choro brotou estremecido no corpo inteiro, desaguava; a concha da mão se transformou em canoa para o ser de amor, levado pelas águas em rumo ao destino dos que não ficaram.

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