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Relato de um corvo, por Eder Quintão

Um amigo meu, professor de biologia, me assegura que entende tudo da
língua dos pássaros, como por exemplo a dos corvos, animais muito
inteligentes e loquazes. Assumo que tenha me contado a verdade pois é um
bom cientista e ateu, e não acredita em disco voador de outro planeta. Contou
que ouviu essa conversa de um corvo da floresta com um corvo conterrâneo
que nunca saíra dela, mas que desejava muito conhecer como vivem os seres
bípedes nas cidades. Esse depoimento é de um corvo, tomado enquanto meu amigo
descansava sob uma jabuticabeira frondosa. Os corvos pulavam de galho em
galho enquanto comiam jabuticabas e engoliam os caroços. Meu amigo acha
que um falava muito ao outro, mas como às vezes esvoaçavam, ele não ouviu
tudo que o falante dizia. Imagino até que tenha inventado um pouco do que
ouviu. Diferente dos corvos meu cauteloso amigo cuspia os caroços pois
achava que eles davam apendicite!
Em palavras entrecortadas, às vezes difíceis de entender, ouvia a
história de que povo é uma porção de bípedes juntos (quando se junta), mas à
noite o povo todo some, entra em umas caixas, deita-se muito quieto (viu isso
pelas frestas nas paredes das caixas), levanta-se quando a noite acaba, sai
das caixas e vira povo de novo caminhando nos espaços ente as caixas.
Portanto, é diferente das aves que nos entretêm sempre estando ou não
esvoaçando festivas juntas, dia e noite.
E meu amigo prosseguiu contando o que dizia o corvo, conhecido sagaz
observador e que vai abaixo.
“Essa porção de povo aparece de dia e caminha então nos espaços
entre as caixas nas quais permaneceram à noite. Mas, alguns entes desse
povo estão sempre no chão no espaço entre as caixas, sem que eu, corvo,
entenda a razão: nada tem a ver com frio, calor ou chuva – essa água que
despenca de cima, mas não sei de onde vem pois que acima do chão observo
só tem ar, mais nuvens, é claro – pois muitas dessas mesmas pessoas
continuam ali bem quietas a noite toda molhadas até seus ossos. Esses
infelizes não são como nós que sempre nos abrigamos sob boa folhagem. Por
isso, eu garanto que é uma gente diferente das gentes que ficam à noite dentro
das caixas, como nós que adoramos nossos ninhos”.
“Muitas dessas caixas se empilham umas sobre as outras e até muito
alto, tão alto quanto conseguimos voar. Por isso acho que não deve caber todo
aquele povo nas caixas que estão embaixo. Acho que os bípedes sendo
muitos, de alguma forma devem passar para as caixas de cima. Deduzo isso
porque à noite observo que todas as caixas empilhadas estão iluminadas.
Quando eu puder investigar melhor saberei como fazem, mas, considerando
que não sabem voar como nós pensei que talvez possam subir umas sobre as
outras ou então usam alguma plataforma móvel”.
E prosseguiu o corvo…
“Estranho é que todos esses bípedes do povo se enrolam durante o dia
todo em panos muito engraçados. Nenhum deles aparece sem esse
revestimento, exceto quando nadam em enormes caixas de água ou no mar e
nas praias. Não são como nós que nos vestimos só com nossas asas e penas
permanentemente. Sem asas como as nossas eles têm a infelicidade de não
voarem fora das caixas. Uns bípedes têm fiapos sobre a peça que fica acima
do corpo – que para nós são as cabeças – e os panos cobrem separadamente
cada uma das duas estacas que usam para se locomover sobre o chão. Nessa
parte de cima desses entes do povo há alguns que tem muitos fios, muito mais
abundantes ao lado das bolas superiores de onde saem os sons que emitem
que é o mesmo buraco por onde enfiam o combustível com que se alimentam,
mas não comem nosso alpiste embora me pareça que alguns estranhamente sejam
vegetarianos. Muito interessante é que tais bípedes têm duas bolinhas na parte
de baixo do corpo, entre as estacas de locomoção, dentro de um saquinho, sob
um apêndice que utilizam para jogar fora uma água amarelada (se usam o
longo apêndice para outra finalidade não saberia dizer agora). A outra parte do
povo é de gente que tem muito mais fios, bem mais longos, e às vezes
enrolados acima de duas bolinhas (que se parecem com nossos olhos) na
frente da parte de cima do corpo e que acho também usam para enxergar visto
não possuírem antenas como os insetos que gostamos de comer. Essas
pessoas também emitem sons mais delicados, agudos e suaves, mas não piam
como nós e os panos que utilizam enrolam simultaneamente as duas estacas
com as quais se locomovem. Essa forma de se cobrirem é a melhor para
distinguir um do outro. Notei que diferentes dos que emitem sons graves, esses
últimos se sentam em vasos grandes para jogar fora a água amarela, mas são
tão cobertas de panos que não consegui ver de onde sai aquele líquido (estou
muito curioso para descobrir o buraco de onde ele vem). Em nosso caso, tudo
sai pelo mesmo orifício juntinho com nossas fezes e ovos”.
“Muitas pessoas que entram nas caixas saem delas numas caixas
menores que se movem sozinhas sobre uns apêndices redondos que giram
depressa e soltam uma fumacinha na parte de trás. Existe nessas caixas um
tubinho que eles enchem de um líquido amarelo, com cheiro forte, mas capaz
de pegar fogo. Tais coisas não são pessoas: são só objetos que fazem um
barulho meio surdo, mas pelo que entendi não usado para se comunicarem. Já os
bípedes que compõem o povo emitem sons, e acredito que por meio deles se
comunicam entre si, e parecendo conosco, às vezes até cantam”.
“Observei também que as pessoas que não entram nas caixas à noite
nunca usam essas caixas menores que possuem rodas. Notei também que
cobrem o corpo com panos feios, sem cor, às vezes rasgados e sujos e só
ficam naqueles espaços entre as caixas grandes pedindo uns disquinhos para
os bípedes que estão dentro das caixas que rodam, mas só quando elas
param. Não sei o que fazem com esses disquinhos, mas vou verificar melhor
para descrever. No entanto, percebi que alguns bípedes do povo têm
disquinhos para dar, mas outras não tem. Não sei por quê. O fato é que
diferentes deles nós limpamos nossas penas com o bico e água do rio e da
chuva, enquanto os que pedem disquinhos cheiram mal. Porém me
surpreendeu é que esses últimos se alimentam muito bem obtendo comida de
uns cestos que ficam esparsos nos espaços entre as caixas. São como nós
bicando frutinhas na floresta. Já os que dormem dentro das caixas grandes
devem ser indigentes pois não sabemos como encontram alimento”.
“Vagando entre elas notei ainda que emitem sons, mas que sons
semelhantes saem também de alguns locais contendo umas caixinhas bem
menores. Curiosamente me parece que todos esses bípedes têm essas
caixinhas dentro de bolsas nos panos que as envolvem, retiram-nas com seus
longos apêndices da parte de cima do corpo, encostam-nas ao lado da bola da
parte de cima dos mesmos corpos e começam a emitir sons ininteligíveis,
depois param e guardam essas caixinhas de volta nos mesmos buracos
desses panos. Acredito que essa gente do povo tem algum desequilíbrio
mental, uma anomalia de comportamento para ter o estranho hábito de emitir
sons nessas caixinhas sem qualquer necessidade”.
“Quando á noite estão dentro de suas caixas talvez difiram de nós.
Consegui pousar perto de algumas frestas dessas caixas e espiar lá dentro
embora tenha descoberto que eles se cobrem com outros panos de modo que
não posso imaginar o que fazem embaixo deles. Porém, em algumas caixas
encontrei gente de menor tamanho dormindo sobre o que me parece com uns
ninhos separados. Tudo indica que, como nós, eles também fabriquem
filhotes, mas por meios muito estranhos, não a botar ovo o que seria normal na
nossa natureza. Entretanto, vejo semelhança deles em nossas matas em que
os animais de quatro patas que também perambulam pelo chão têm o costume
de se cavalgarem por trás por algum tempo, sempre os machos maiores sobre
as fêmeas menores. Depois disso – todo pássaro observa – após algum tempo
as fêmeas jogam para fora de suas barrigas os animaizinhos pequenos que
então grudam suas boquinhas em bolas que ficam na parte de cima da frente
do corpo dos quadrúpedes que talvez sirvam para alimentar seus pequenos
com leite. Eles crescem apenas com isso. Não sei se esses entes bípedes das
cidades fazem a mesma coisa e infelizmente não tenho como saber”.
E continuou…
“Claro que meu maior interesse é saber como esses bípedes procriam,
se botam ovo como nós fazemos. Convivendo com eles mais tempo terei muito
a descobrir. No entanto pelo que observei durante o dia há fatos nessa gente
que são enigmas. Por exemplo, notei que os que cobrem os apêndices
locomotores inferiores com panos separados são os que, ao caminharem
juntos, invariavelmente unem seus apêndices superiores – equivalentes a
nossas asas – com os das que cobrem os dois apêndices de locomoção com
um só pano, porém, quase sempre o último desses bípedes é de menor
tamanho e, interessante, esteticamente bem mais bonito. Isso é bem diferente
de nós em que macho e fêmea podem ser igualmente lindos, aliás, nossos
machos são um pouco maiores e mais cheios de plumas coloridas. No entanto,
já observei raros bípedes com os mesmos panos separados sobre suas
estacas inferiores a andarem bem juntos e tendo seus respectivos apêndices
superiores entrelaçados. Ainda preciso esclarecer tais pontos para
compreender melhor na biologia deles como se reproduzem já que não me
parecem botarem ovos como nós fazemos”.
Ainda meu amigo ouviu o que dizia o corvo que até então só escutava:
“Nem sempre foi fácil” respondeu o corvo falante. “Havia pássaros me
incomodando tal como acontece aqui em nossos campos onde não vivemos
tranquilamente livres e despreocupados embora os bípedes devam pensar que
sim ao nos verem voando pelos céus. Creio também que me enxotavam por
acharem que eu era um estranho pombo preto”
Meu amigo não foi muito preciso sobre as palavras do corvo nessas
últimas descrições. Pareceu-lhe que ficaram muito mais ariscos bicando as
jabuticabas do que animados em continuar o bate-papo…

“Como você viu tudo isso?”

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