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Reflexões sobre A Orelha,
por Eder Quintão

A natureza selecionou em nós alguns apêndices bem visíveis, por isso merecedores de criteriosa análise. Impulsionou-me a produzir essas considerações aquela apresentadora de conhecido jornal televisivo noturno: inteligente, belos olhos, boca e voz, expressivo nariz, tudo emoldurado por dois apêndices, um de cada lado de seus parietais, que seus maquiadores nunca se importam camuflar com mechas de sua abundante e charmosa cabeleira: são as inconvenientes, inexpressivas orelhas, que apenas contaminam, maculam, o conjunto da obra.  

Vejamos o papel delas no reino animal. Répteis, peixes, anfíbios, aves e tantos mamíferos dispensam-nas. Outros têm-nas exuberantes e perfeitamente inúteis, como os elefantes, talvez limitadas a espantar inimigos e insetos, neles e nas elegantes girafas, igualmente inúteis à audição pois ouvem esplendidamente com os orifícios auditivos tampados por esses extensos pavilhões auriculares, como cortinas. Caninos, felinos e leporidae (coelhos) são igualmente lesados no processo evolutivo com enormes orelhas inúteis a suas apuradas eficiências auditivas. E os animais domésticos são pastoreados no campo ouvindo o dispensável ruido sutil dos predadores servindo-lhes as orelhas apenas quando se erguem denunciando a aproximação ameaçadora, porque haviam já sabido deles premonitoriamente por olhos e odores. Óbvio que nos primatas, infelizmente à exceção nossa, são discretas, sutilmente proporcionais ao tamanho de suas cabeças e esteticamente camufladas por extensa pelugem. 

Nós sim fomos então esdruxulamente punidos nessa seleção natural: não espantam insetos – quando querem se intrometem em nossos condutos auditivos sem qualquer cerimônia – e não auxiliam na percepção sonora enquanto definitivamente maculam a formosura concedida pelas demais peças de nossa cabeça que também exercem papéis essenciais às funções biológicas e manifestações emocionais. Os olhos, os lindos lânguidos olhos que inspiram os poetas, falam a beleza humana e todos seus sentimentos, primorosa, rigorosa e artisticamente. Quem não se enamora ao vê-los felizes, angustiados, temerosos, odiosos, espantados, esquivos, cativantes, sexualmente provocantes e ainda engalanados com os adornados de cílios e sobrancelhas, naturais e sintéticos? Falam as emoções, todas, esses tais olhos com seus olhares. 

E os lábios? Separados por uma linha simples e uniforme, são finos, ou carnosos, discretos ou exuberantes, pálidos ou rubros, expressando em seus movimentos à absoluta perfeição os sentimentos que emanam deles como vozes, e desde o sublime sugar do mamilo à amamentação ousando acompanhar e até mesmo dispensar todas nossas manifestações emocionais dependentes da qualidade de artista. Pelos olhos ou os lábios as artes humanas retratam-nos.  E o nariz? Perguntam. Este, bem menos exuberante em se manifestar, não é uma pirâmide inerte: move suas asas nasais, embora discretamente, conferindo personalidade ao todo e nos transporta sentindo os odores. Cleópatra se distinguia pelo seu, os césares pelos augustos deles, e se inadequados servem ao menos para alimentar cirurgiões plásticos, enfim, indispensáveis à paisagem de nossos rostos.

Mas as orelhas…. As orelhas? A evolução produziu-as simples, circulares ou alongadas, sempre côncavas, singelas como as linhas da arquitetura moderna, curvas de Oscar Niemeyer, mas só nos humanos contaminadas pelo barroco e rococó, arquiteturalmente poupando toda a escala animal, exceto ao mais nobre deles. Fomos esquecidos nesse ponto no processo evolutivo. Apresenta-se em nós exuberante em geometria excessiva, redundante em suas circunvoluções. Junta desordenadamente as curvas geométricas sem a nobreza da concha marinha ou o encanto da “art nouveau”. Colhe os sons, é verdade, mas os conduz caoticamente por labirintos de absoluta indigência estética juntando ao acaso curvas, circunferências, hipérboles, elipses e ovoides com mais voltas redundantes do que as alças intestinais, as quais, pelo menos não são fixas: movem-se continuamente e, também feias, têm a vantagem de permanecer sempre escondidas. E se arvoram nomes anatômicos de discutível utilidade e função, como lóbulo, trago, hélice, antélice, concha, incisura e daí por diante, tudo fixo, imóvel desde que saem do útero, sem nada que comova essas curvas labirínticas a despeito da variedade dos sons que ali chegam transportando infinitas emoções, inerte, inflexível, totalmente surda, absolutamente alheia às comoções a seu redor, a decibéis, ritmos, timbres, coloraturas musicais. Só os tímpanos percebem e o ouvido médio sente e nos informa.

À falta de outros propósitos mostrando sua inutilidade é usada para indicar, inadequadamente, parte externa de livro sobre seu autor envolvendo a formosura da obra, além de penduricalho de adornos metálicos tentando disfarçar a inconveniência de suas existências. Não serve para mais nada já que inútil para audição! Quando salientes conferem à fisionomia uma feiura ímpar, indecorosa, chamada orelhas de ábano, como se fôssemos borboletas esvoaçantes imitando elefantes com suas próprias, mas impermeáveis a qualquer terapêutica por técnica freudiana, resolvíveis apenas pela indispensável arte cirúrgica.

Vejam as estrelas famosas que consagraram o cinema passado:  Ingrid Bergman, Vivien Leigh, Sophia Loren, Marlene Dietrich, Elizabeth Taylor, Greta Garbo, Julie Andrews, Brigite Bardot, Rita Hayworth, Katherine Hepburn, Audrey Hepburn (desculpem-me, sou saudosista). À exceção desta última, todas as demais escondiam com os penteados parcial ou, em geral, totalmente seus apêndices auriculares, mas em Audrey eram tão rentes ao crânio que só exibiam o perfil, omitindo a visão geral do distorcido caracol. Shirley Temple, a menina prodígio do século passado, a despeito da tenra idade, as encobria por completo com seus cacheados cabelos! Todas elas sem adereços em seus lobos, assim impedindo expô-las ainda mais indesejavelmente do que consegue fazê-lo a própria natureza.    

Orelhas não se transformam desde o nascer, apenas crescem. Ficam mais polpudas com a idade sem disfarçá-las, e até quase sem rugas. Também não importa se estas surgissem já que não piorariam o aspecto indesejável conferido ao virem ao mundo. Era consciente a tática cinematográfica de escondê-las ou isso era inerente ao inconsciente da arte?  

E com seus cabelos curtos, que só fazem exibi-las, como se comportar frente a orelhas masculinas? Elas fazem parte da indumentária corpórea de traços grosseiros determinados pela testosterona. Se orelhas masculinas tivessem que ser escondidas, e igualmente bem merecem, teriam que se socorrer de burkas para omitir tudo mais, a começar pelo inconveniente de barbas e bigodes. Mas não passam despercebidas ao gênero masculino, tanto assim que Vincent Van Gogh, inebriado pela beleza que produzia contrastando com a feiura que o importunava, não tolerou a própria exibindo apenas a face da qual a amputara. Falta de anestesia impediu que vivendo mais se livrasse da outra. Se alguém indiscutivelmente conhecia estética era ele próprio, em apoio a minha tese. De fato, há poesias sobre os olhos, a boca e, embora rara, sobre o nariz, mas absolutamente nada sobre a orelha. Orelhas humanas são incompreensivelmente feias, terrivelmente, inexoravelmente, e nada inspiram além de abjeta tristeza. Se estiver errado não hesitarei em me retratar.  

8 comentários

  1. Muito divertido, bom demais, doutor.
    O senhor é mestre na escrita fluente, inteligente, humorista, irônica e maravilhosamente criativa.

  2. Belo exercício, prezado Eder. Pelo visto, compartilhamos o mesmo interesse auricular. Escrevi sobre nossos odiáveis pavilhões há alguns meses. Precisamos marcar uma conversa de pé de orelha.

  3. E o pior, querido Eder é que elas crescem muito com a idade. Se vivermos muito vamos morrer parecendo elefantes.
    Me diverti muito com a sua crônica. Bjs. Lidia

  4. Obrigado pelos deliciosos comentários !!! Leonardo: que falta cometi!!!. Esqueci de mencionar a serventia: óculos, mas seria antidarwiniana….

  5. Cara, você é um excelente cronista! As minhas orelhas, além de lindas, são muito funcionais: seguram óculos muito bem, desde princesa anos, e nunca falharam . Estou aguardando ler outras crônicas suas. Aqui atenta com as orelhas em riste! Sucesso garantido para você. Analucia

  6. Discordo caro Éder. Já reparou na formosura das orelhas dos bebês. Feias se retornam quando os lóbulos crescem, mas suas circunvoluções acho interessantes. Mais interessante ainda é o seu texto. Parabéns,

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