E de repente, sempre de repente, chega o Natal que estava ali escondidinho. Os sintomas começam de forma leve, uma anúncio de TV aqui, uma lâmpada acolá. E a coisa vai aumentando avassaladoramente, entre ofertas de presunto tender em supermercado e as fieiras de lâmpadas na vizinhança. Um doce pânico começa a se instalar, com ameaças de encontros de congraçamento profissionais e festas de famílias imaginadas, com aquele cunhado bêbado que roubou a família abraçando a todos aos prantos e declarando amores eternos, aos gritos de que família é tudo.
O inferno – com o perdão da expressão pouco adequada à data magna da cristandade – se instala gradativamente no trânsito e, repita-se, nos shopping centers e suas filas. Cartões de crédito são esvaziados até o limite para presentear com dignidade, na esperança de que a recíproca seja verdadeira. O especial de fim de ano com Roberto Carlos é celebrado como se fosse o Messias de Haendel nacional, este mesmo nunca lembrado, senão na minha casa. Judia.
Ser judeu no Natal é provação para uma criança. A data é solenemente ignorada, não tem árvore em casa, nem presente dentro da meia ou do sapatinho ou fora deles. No máximo, umas castanhas cozidas, uns figos turcos que aparecem, umas nozes. E não me venham com essa história de Chanuká, Festa das Luzes, porque não rola. Isso é moda moderna. Jamais se comemorou Chanuká com a força do Natal e a criança que fui sublimava a data. Minto: fomos adotados pelos Souza Gomes, uma família do Pará, de queridíssimos amigos. E lá, sim, passei um Natal (talvez mais de um) inesquecível. Aliás, acho que foi a véspera e no dia seguinte, o almoço.
A lembrança me remete ao filme do Bergman, Fanny e Alexander. O apartamento no Flamengo, amplo, com a família anfitriã enorme, todos bem vestidos e a mesa central, plena de quitutes: fui apresentado aos presuntos, pernis, fios de ovos, barquetes de camarão, lombinhos e aos maravilhosos doces que desconhecia. Panetones e afins se instalavam entre as frutas secas já mencionadas e olhando do alto dos anos passados vejo um menino guloso, fascinado com um Natal de verdade.
Prossegue a vida e sou adotado em outro por um querido amigo que a vida levou e que me conduz – em contraponto ao féerico Natal da infância – à casa de seus tios, um apartamento conjugado em Copacabana. E ali também se fez a festa com a mesma alegria e sensação de acolhimento. Um hiato de 20 anos e começo a frequentar natais luxuosos na casa de outros queridos amigos, onde, para minha surpresa, meus presentes estavam reservados e embrulhados nas árvores. Nunca imaginei que tivesse que retribuir, passando assim por indiferente. Ah, que festas maravilhosas, coloridas, não necessariamente religiosas e com a esperança de dias e tempos melhores borbulhando nos abraços e olhares maravilhados! E nós, os não-cristãos adotados naquela noite, participando, encantados das comemorações e esvaziando a parte religiosa, da Missa do Galo, do presépio, e peneirando a nossa parte naquilo. A nossa parte é imensa, na verdade. O aniversariante é nosso correligionário, desde seu nascimento até sua morte. Vem da casa de David, como narra o Novo Testamento e olhem, é por Maria, não por José. A saga é narrada musicalmente por Händel em seu magnífico oratório O Messias, que ouço todo ano e tive a ventura de assistir no Carnegie Hall, em um Natal de anos atrás, com emoção.
E não era para isso? O Messias faz referência ao “Mighty God, the everlasting Father, the Prince of Peace”, transcrição literal da profecia de Isaías, outro dos nossos. Os tempos da paz eterna almejados. Tocante, o Messias de Händel. Mas o povão preferiu adotar a cantilena que John Lennon apresentou em “Happy Xmas (War is over)” . Adoram, por causa do lálálá do coro infantilizado, fácil, porém irônico, mas…ninguém ouviu a letra, cáustica e acusadora:
And so this is Christmas, and what have you done. (Então é Natal e o que você fez?)
Pior que isso, a canção nem é de autoria de John Lennon, que apropriou-se, não sei se legalmente ou não, de uma músicia do folclore norte-americano, denominada Stewball, gravada por Peter, Paul and Mary, em 1963, que narra a história de…um cavalo de corrida. Então, como se diz em São Paulo, músicas de Natal, no duro, mesmo, são aquelas mais tocadas do mundo, começando por Holy Night – e seguindo com White Christmas. A primeira, composta pelo judeu francês Adolphe Adam, e a segunda, pelo judeu, nascido na Rússia, Israel Isidore Baline, o Irving Berlin. Com estas composições laicas, estes compositores celebraram aspectos da tradição cristã de valores universais de paz, amor, reunião e compreensão entre os povos. E no momento em que escrevo, sou tomado por estes sentimentos solidários, terrenos, resolvendo as faltas de árvores de Natal da infância e superando o olhar invejoso para a festa dos vizinhos. Olho para os céus com extase pela elevação espiritual que estes pensamentos provocaram, e evoco e invoco a utopia de um mundo de paz, amor e harmonia.
Ué, o que é aquilo? Um pássaro? Um avião? O Super Homem? Não, é um trenó puxado por renas. Oh, Oh, Oh! Feliz Natal !!!
Clique para ouvir as músicas:
Prezado Carlos Schlesinger: Me diverti muito !
Comemoramos o Natal de um…. judeu e de seu apóstolo Paulo, que era…. judeu novo, e ouvimos Veni Domine No.1, Op.39, e Surrexit Christus
de Felix Mendelssohn, que também era judeu… Portanto, entremos no clima natalino que é uma festa tipicamente judaica… mesmo servindo pernil…
Muito obrigado! Somos todos das mesmas tradições
Carlos, tenho satisfação em ser tua amiga, ainda que por pouco tempo ao vivo, e também judia, por compartilhar com você, via este texto, destas passagens vivienciadas nestes eventos natalinos, onde mais importante do que o perú, o pernil, etc, etc, é o “estar junto”, incluindo você. E a foto que abre o texto traz bem nítida esta imagem e ainda iluminada que, a mim, também me remete à Chanuka.
Carlos, que delícia de texto. Fui sorrindo do começo ao fim.
“ O especial de fim de ano com Roberto Carlos é celebrado como se fosse o Messias de Haendel nacional, este mesmo nunca lembrado, senão na minha casa. Judia.” Fenomenal.kkkk
Adorei! Um dia te conto o que D Judith aprontou no meu ingênuo Natal. Beijos e parabéns, feliz Natal 🎄
Carlos, grande e delicioso texto.
Como judia, vivenciei a inveja das arvores de Natal na casa dos outros. Assim que pude, fiz árvores coloridas e iluminadas de 3 metros de altura, um exagero!
Desejo satisfeito, passei a desejar outras coisas.
Seu texto, um presente!
Bom Natal!
Muito obrigado!
Carlinhos adoro te ler. Feliz Natal, amigo
Oi Carlos, adorei sua crônica e como judia que sou tb morria de inveja dos amigos vizinhos que tinham àrvore de natal. Até dos filhos da lavadeira que eram meus amigos eu tinha inveja pois morando perto eu ia lá ver em completo encantamento qdo eles recebiam uma Cesta de Natal Amaral. Obrigada por me relembrar.