Corre um dia qualquer do pós-futuro. Ainda existem porões, não mais subterrâneos, úmidos e escuros, próprios para a guarda de bons vinhos. Agora são metaporões, protegidos do acesso indevido – especialmente de humanos – por velhos e potentes cadeados de blockchains. Abrigar, “envelhecer” boas ideias, eis um dos usos mais nobres dos metaporões modernos e uma das principais razões pelas quais sobrevivem. Visitas humanas – excepcionais, claro – somente seriam possíveis com a prévia liberação sistêmica.
Era o caso! Houve um alarme nos teclados. A tecla do ponto e vírgula anda sumindo sem explicação. Usuários ainda não perceberam…
O metaporão YR¨%*@PONt abrigava relíquias colecionadas pelos sistemas de pontuação: usos notáveis criados por proto-escritores; análises literárias em que pontuações brilhavam; motivos pelos quais foram pensados esse e aquele indivíduo pontual. Enfim, relíquias que adormeciam nas prateleiras virtuais, já cobertas por um certo metamofo.
Aquele porão específico vinha sendo usado como um centro de apoio aos sinais de pontuação. A Inteligência Artificial Autônoma (IAA) que controlava pontos, vírgulas e companhia limitada chegara à conclusão que refletir “com seus botões” ajudava a enfrentar a dura realidade das mudanças na linguagem escrita, o contínuo desgaste que a pontuação sofria no dia a dia da escrita. Ajudava, mas se mostrava insuficiente. Especialmente no caso do ponto e vírgula. Era o caso excepcional, pensou IAA, em que, um tanto quanto a contragosto, um humano poderia ser chamado a adentrar num metaporão.
A pesquisa quântica identificou um professor e pesquisador que talvez pudesse ajudar. Tratava-se de Pedro Paulo, que alguns alunos chamavam de PP. Ele mesmo se apresentava como Pepe, com a tônica na primeira sílaba – achava mais pessoal, mais caloroso, enfim mais humano.
Pepe, ao aceitar o convite para uma reunião no metaporão YR¨%*@PONt, fez apenas uma exigência: o ambiente virtual devia reproduzir um salão de pizzaria de bairro, relativamente vazio numa quinta-feira à noite. Ao sentar-se à mesa para ouvir as queixas daquele grupo, Pepe se apresentou e colocou toda a pontuação bastante à vontade:
– Sou todo ouvidos Iaiá. Pode me considerar um amigo de vocês. Estou aqui para ouvir. Ouvir até o último fio de cabelo.
– Iaiá?
– Opa, desculpe. É que achei muito formal me referir à Inteligência Artificial Autônoma como IAA. Iaiá fica melhor, não acha?
Assim, à medida que foram se sentindo num ambiente de pizzas e cervejas, confissões “pontuais” passaram a ser relatadas. Pepe ouvia, ouvia e se emocionava. A maioria das queixas refletia a perda de importância das pontuações. Pode o ponto de interrogação ser deixado de lado nas frases interrogativas?
Se até mesmo as palavras andaram ameaçadas pela invasão dos emogis, carinhas e figurinhas auto expressivas, com a pontuação o desrespeito era muito maior. A vertiginosa velocidade das mensagens atropelava os sinais…
– Pontos também tem direitos!! Bradava o ponto de exclamação, sempre um dos mais inflamados.
Papo vem papo vai, Pepe notou o ponto e vírgula encolhido num canto. O caso era grave. Não participava da conversa; os colegas tinham receio de que estivesse até pensando em suicídio, antes que alguma nova reforma ortográfica acabasse com ele.
Ora, ora, o ponto e vírgula é uma ponte, um recurso de estilo, de clareza; duas frases interligadas que se complementam, se ajudam; não estão separadas pelo muro do ponto final. Seu uso precisa ser incentivado, não abandonado.
Pepe pensou por um tempo. Por um lado, há que se reconhecer que a língua é viva, evolui e, como tudo que é vivo, vai se diferenciando, sofre adaptações com o tempo. É inevitável. Por outro lado, entretanto, a literatura, a imprensa, estudos e documentos, enfim toda a linguagem escrita de maior densidade, não vai desaparecer e nela a pontuação é parte fundamental da estrutura.
Concluiu que deveria agir sobre os algoritmos que controlam a escrita nos meios digitais, ou seja, em quase tudo. Mostrar aos algoritmos a relevância da pontuação, começando pelo caso mais urgente do ponto e vírgula, claro.
Dentre as sugestões, encaminhadas a Iaiá e agrupadas sob o título “Despertadores de Amor pelo Ponto e Vírgula”, pinçamos as seguintes:
– Para começar, passemos a chamá-lo de PV, muito mais fácil e carinhoso. E, imediatamente, adotar o destaque de PV, quando usado para separar listagens como essa. Assim:
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– Divulgar nas escolas um livro paradidático infanto-juvenil que ele mesmo escreveria: “O Ponto casou com a Vírgula e nasceram Ponto -Virgulinhas”, onde as ilustrações – caprichadíssimas – mostrariam os pequenos PVs nas mais variadas cores e seus encaixamentos em frases “iluminadas”
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– Considerando a necessidade de enfrentar a discriminação de que é alvo, propor o uso de PV como símbolo auxiliar do movimento LGBTQIA+. Colocado entre parêntesis, para mostrar a necessidade de proteção e respeito, um único símbolo, estampado na bandeira multicolorida, poderia representar a interminável sucessão de letras: (;)
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– Lembrar de PV nas campanhas de mobilização social em favor da proteção ao meio ambiente. Coisas do tipo: “Protejam as nascentes; salvem os rios”
; …
Bom, vou parar por aqui. Você, prezado e corajoso leitor, ao dar vida a esse texto com sua leitura atenta, deu também sua ajuda para a recuperação de PV e, certamente, influenciou algoritmos.
Pepe e PV enviam agradecimentos sinceros; abraços virtuais e pontuais também.
; carlos! penso Que esse posfuturo ja comessou; abrasso;