Quando eu era pequena gostava de brincar debaixo da mesa. Algumas vezes escondia-me ali e, sem que percebessem, escutava a conversa dos adultos enquanto almoçavam ou sentavam-se para jogar cartas. Era gostoso ficar ali, sentindo-me abrigada e protegida. Ao mesmo tempo em que transgredia regras, por estar escondida e escutar conversas que não me diziam respeito, estava protegida por eles e nada de ruim poderia me acontecer. Algumas vezes cheguei a adormecer e acordar apenas quando escutava vozes aflitas me procurando pela casa. Então saia sem que me vissem e fingia estar dentro do quarto ou do banheiro, para que nunca descobrissem meu esconderijo.
Depois de muito tempo, já adulta, houve um dia em que entrei debaixo da mesa em uma situação completamente diferente daquela de minha infância. Foi durante uma queimada.
Você já viu uma queimada?
Norte do Brasil, fazenda só mato, filha bebê. Derrubada de mato feita na foice, no facão, na moto-serra. Toda a vegetação para o chão. Verde caindo, barulho de árvore tombando. Depois silêncio. Tudo aquilo que tinha sido decepado ainda com vida, resta tombado no chão para secar, castigado por dias e dias (cerca de dois meses) de sol.
Até que chega o mês de agosto, mês da queimada. Acero para o fogo não passar para as fazendas vizinhas, pessoal saindo para todos os lados da fazenda, todos prontos cercando a área seca e, a um sinal, tacar fogo!
De longe, bebê no colo, vejo tudo parada no vão da porta da cozinha.
Sobe densa e negra a fumaça do fogo. Barulho de estalos, fuligem começa a cair. Sentamo-nos no degrau, minha filha bebê e eu, ambas quietas, meus olhos nostálgicos e os dela incrédulos. Eu digo: estamos queimando o mundo! Ela aponta a fuligem e diz “óia”.
Então acontece, num repente. Do meio do cinza surge uma fumaça que dá voltas, cada vez mais concêntricas e mais rápidas. Um rodamoinho, um funil que caminha para todos os lados e vem vindo, meu Deus, para fora da queimada, para cima de nós. Vem vindo, não é possível, como? Vai sair de lá? Vem! E sai do mato e entra para o quintal e corro eu com o bebê no colo para debaixo da mesa.
Barulho, vento zupt, zupt, zupt, barulho redondo, como explicar esse barulho? Passa pela casa, ventania, telhado se abrindo, sobre a mesa, telhas e telhas estilhaçadas.
Depois silêncio.
Embaixo da mesa minha bebê e eu, incrédulas.
O rodamoinho passou. Destelhou metade da casa, nenhum estilhaço nos atingiu.
Saímos do esconderijo de gatinhas. Ela diz óia, óia, óia, e eu penso: é a natureza que se revoltou.
Que aflição Tita!
Quais prometeus desarrazoados roubamos o fogo no afã de dominá-lo. De vez em quando ele faz uma demonstração e só não levou a mamãe e seu bebê porque não quis. Era só para assustar, só um aviso.
Anos após ele mostra sua potência. Agora é a sério, acabou-se a brincadeira. Está queimando um país.
Pois é Tita. Linda e duríssima história.