Quando o carnaval chegar
E a gente se guardava para quando o carnaval chegasse, como dizia a música. Evocava a Musa. E Baco, principalmente. Alguns partiam para as ruas e escolas de samba, outros tantos, mais afortunados, para os bailes de carnaval nos clubes. Os primeiros Cubas Libres, me lembro bem agora, nas asas, não da Panair, mas da liberdade permitida e de hora marcada. E lá íamos, já não sei se hoje ainda vão.
Na primeira infância, as marchinhas do passado, as meninas vestidas de bailarina, com purpurina no rosto. Um cheiro de lança-perfume no ar, as bisnagas douradas Rodouro, então consideradas inofensivas, as serpentinas multicoloridas, as bandas mambembe do clube tocando Mulata Bossa Nova, aquela que caiu no hully gully, A Cabeleira do Zezé, que trazia dúvidas ingênuas sobre o gênero do personagem.
Pérolas, as marchinhas, e entre estas, uma das minhas preferidas, a de Nuno Roland, que gravou a impagável, Mag, Ines e Ana, três mulheres com as quais passaria o carnaval, só de água e não de cana inspirada na então famosa água mineral Magnesiana.
O tempora, o mores! Oh, tempos, oh, costumes!
A adolescência frenética conduzia aos mesmos salões, mas a esta altura já com sambas mais animados, um Pega no Ganze , Pega no Ganzá aqui, Segura esse Samba Não Deixa Cair acolá, que se pulava agarrado com uma ex-colega de escola, a irmã desavisada de um amigo, transmutada em princesa oriental, pela visão perturbada por uns copos de plástico cheios de whisky Drurys, ou Hi Fi ( vodka com Crush). E falando em Crush, como não mencionar que Ulalá, Ulalê, você é mais você, com o umbiguinho de fora, garota de Saint Tropez.
Jorge Veiga decantava o erotismo sutil da calça Saint Tropez, que deixava o umbigo de fora e interpelava a moça tecendo a comparação bizarra: laranja da bahia, tem umbiguinho de fora, por que é que você, Maria , escondeu o seu até agora?
Pó de Mico, Me dá um Dinheiro Aí, Mulata Ie Ie Ie, eram para fazer bagunça. Mas a beleza estava nas marchas-ranchos que as bandas tocavam para o folião descansar, às vezes melancólicas, mas melódicas e líricas. Entre elas, uma das minhas prediletas, a Avenida Iluminada. O meu amor vai desfilar, e o autor só vendo seu amor sorrindo, ganhando aplausos da multidão, sem saber que estão rolando as lágrimas do seu coração.
Emoção, admiração ou rejeição? Jamais saberemos.
Para descansar, trôpego, o remédio vinha da banda, atenta aos movimentos do salão, que diminuía o ritmo, acenando com uma Bandeira Branca , Máscara Negra, e Avenida Iluminada…
Passa o tempo, passa a vida, e em frente à televisão ou na própria passarela…
Vejam, ilustres leitores, essa maravilha de cenário, é um episódio relicário que o artista, num sonho genial, escolheu para esse carnaval. E o asfalto, como passarela, será a tela, o Brasil em forma de aquarela.
A tela da beleza, das evoluções mágicas, das portas-bandeiras, mestres-salas e passistas. De Paulinho da Viola, sentindo o coração apertado, todo seu corpo tomado e a alegria voltar, cicatrizando um desengano que só um amor poderia apagar.
E a tela de Chico Buarque, com seu pincel amargurado, seu olhar decepcionado com a mais bonita das cabrochas daquela ala, onde ele era mestre-sala, constatando que quem não a conhece não pode mais ver pra crer, quem jamais a esquece não pode reconhecer e olha que ele todo ano a fazia uma cabrocha de alta classe e de dourado a vestia para que o povo admirasse.
E o pobre Benito de Paula? Levou uma volta, depois de ter gastado tudo em fantasia que era só o que ele queria ver, em retalhos de cetim. Mas chegou o carnaval e ela não desfilou , chorou na avenida e tudo. Mas fez um samba lindo.
No final o Chico Buarque terminou bem, depois de também ter sido toureado pela ingrata. Encontrou uma linda mascarada, quis saber seu nome, ardeu no seu fogo, e, seresteiro, poeta e cantor como ele só, deixou o barco correr, o dia raiar e mandou um carnavalesco seja o que Deus quiser.
O, tempora, o, mores!
Tempus fugit, as lembranças por vezes trazem contraditórias emoções etc., mas hoje eu não quero sofrer, hoje eu não quero chorar, quem quiser que sofra em meu lugar!
Esse texto é dedicado a Donga, Cartola, Ary Barroso, Zé Keti, Jorge Veiga, João Roberto Kelly, Irmãs Batista, Dalva de Oliveira, Lamartine Babo, Silas de Oliveira, Cartola, Mano Décio da Viola, Roberto Ribeiro, João Nogueira , Alcyone, Adoniran Barbosa, Marlene, Emilinha Borba, Beth Carvalho, Luiz Ayrão, Paulinho da Viola, Chico Buarque, Neguinho da Beija Flor, além dos já citados e, mais que tudo, aos anônimos sambistas e carnavalescos de todos os matizes sociais que constroem nossos carnavais de todos os tempos e fazem as as águas rolarem.
Ave, Ave, Evoé!
Delicia de crônica. Um privilégio viver essa época. Acrescentaria o grande Monarco na dedicatória.
Acrescentado “ ad hoc”!
Carlos Schlesinger, como de hábito, arrasou! Belas recordações, a doce mistura de alegrias e melancolia, a vida passando, os tempos mudando, os grandes e memoráveis sambistas e compositores… são lembranças lindas de tempos que já não voltam, e são belas homenagens à Vida! Parabéns!!
Generosa amiga!
Quantas informações perdidas na névoa do tempo, do brasil carnavalesco, simples e pacifico.
Alegria sem consumismo obrigatório de ser feliz!
Muito bom! Musica sempre!
Quantas informações perdidas na sombra do tempo, do brasil carnavalesco, pacifico.
Alegria sem consumismo, obrigatório ser encantado.
Muito bom! Musica sempre!
RESPONDER
Carlos, olha só; hoje mesmo estávamos tentando lembrar a marca do lança perfume, para nós crianças era só um refresco diferente e divertido que comprávamos nas banquinhas ao longo da orla no Guarujá.
Rodouro!!! Lembrei tanto da miga infância e as fantasias de grega, havaiana, ou tailandesa, que minha mãe desenhava , comprava os tecidos e adereços e pedia a uma costureira do Guaru fazer para todas as meninas. Que delícia de crônica!!!
E mais tarde, os lança perfumes eram já em garrafas de vidro – Universitario, da Argentina. Mas a inocência já tinha ido embora.. Obrigado pelo comentário gentil!
Show de crônica que me remeteu aos idos dos anos 70 onde eu pulava a última noite de Carnaval nos salões do Higino em Teresópolis, trajando a mortalha do soteropolitano Bloco do Barão ao som de Garota Bossa Nova com uma candidata a Colombina, esbarro sem querer em seus olhos que imediatamente saltam em direção ao seu nariz quando a sua lente de contato despenca ao solo no meio da multidão regado a confetes e serpentinas. “Cavalheiro” que era, imediatamente me abaixo para procurar e engatinhando chego a saida do salão para não mais voltar. Nunca me perdoei pela atitude. Jovens!
Carlos, você escreve bem demais. Passei pelas suas crônicas e com o maior prazer, revivi momentos esquecidos da minha vida.
Que bem que faz um bom texto.
Obrigada