Escrevo para me ver. Para te ver em mim. Para ver como vejo o mundo. Para me equilibrar entre tempestades e flores. Para cantar ao som de um piano e deixar as melodias correrem em minhas veias junto ao sangue e ao plasma. Escrevo para relembrar velhos e idos amores e para celebrar o júbilo da descoberta de novas dimensões mais suaves. Escrevo para dar uma volta pelos jardins imperiais dos palácios imortais. E também para conhecer os labirintos escuros dos castelos medievais, construídos entre musgos, pedras e muralhas. Escrevo para escalar a árvore centenária, memória de um mundo verde, hoje em ruínas. Escrevo também para revisitar histórias antigas, aventuras de heróis honrados e certos de suas vitórias.
Escrevo para me desencalhar do lodo onde me meti, para levantar âncora e navegar por mares à toa. Escrevo para me purificar, exorcizar meus demônios e perseguir o vento sem asas, solto, coreógrafo da bela dança das folhas. Escrevo para dissolver vestígios do amor impossível e tocar as últimas notas de uma melodia sem fim. Escrevo para dobrar a aposta no possível dos mais impossíveis e chegar na reta final como senhora vitoriosa de mim. Escrevo para ver e sentir melhor os meus incompreensíveis mistérios e desvendar os segredos do fundo dos poços. Escrevo para respirar melhor e criar uma vida colorida, com mais emoções entre os dramas, as tragédias e as comédias cotidianas. Escrevo para buscar a constelação mais alta e longínqua onde resistem os grandes romances, os poemas eternos, as epopeias vibrantes e as gaivotas em fuga dos falcões e das águias predadoras. Escrevo para chegar à fonte de toda a poesia, triste, trágica ou alegre. Embebedar-me da pureza de cada uma e comungar com as almas atormentadas de cada poeta. Meu coração tem segredos indevassáveis que se deixam vislumbrar pelas palavras escritas e pelas não escritas, camufladas sob o véu da sugestão. Sussurros surdos e misericordiosos.
Escrevo para girar a roda da vida e da morte, para fazer as ondas dançarem, para atrair a chuva e para me desnudar ao sol. Escrevo como a criança a correr sobre a grama e se encantar com a borboleta que pousa leve em seu nariz e com a pequena e graciosa joaninha vermelha e pintadinha. Escrevo no mais lúdico e doloroso prazer do avesso, das vísceras e dos reveses. Escrevo para povoar a solidão e conviver com os tantos outros habitantes de mim. Escrevo para não fazer barulho, pé ante pé, titubeante, como a criança ensaiando os primeiros passos em direção à vida.
Escrevo porque sonho, porque existo, porque sofro, porque amo, porque minha alma é plena de imagens, pensamentos, dúvidas, memórias e momentos. Escrevo porque confio nas palavras, tão incertas e dúbias quanto eu. E tão ricas de sentidos!
Escrever é amplo, é fundo, é insondável. Escrever é cachoeira caudalosa se rasgando entre as pedras até chegar ao remanso calmo e translúcido. E depois se debater em nova queda e se ferir, se depurar em destino certo. Escrevo porque quero cuspir a faca da boca e trocá-la pela delicadeza da borboleta pousada no nariz da criança.