Clube dos Escritores 50+ Paulo Akira Perfume de fruta

#mães
PERFUME DE FRUTA, por Paulo Akira Nakazato

Rústica
pele amarela-garça,
pintas de sépia,
rugas violáceas
e um tanto de fel
acumulado na casca:
superfície láctea,
mas que a risco de faca
verte mel, brota
vermelho de carnudo plasma
coração maduro
de mamão papaia. 

– Preciso enganar o estômago. Me dá um pedaço. Mãe, não quer também? – olhei-a quieta na cadeira, com os olhos miúdos e as cãs bordando as orelhas com franjas de pensamentos.
– Humm…?
– Mãe, não quer mamão? – repeti.
– Espera, né!
– Ah, mãe, “otossan” não vai nem perceber. Tem tanta fruta no “butchidã” que ele vai ter indigestão – respondi.
– “Bakataré!”– a palavra brotou de um caroço antigo, enterrado, e veio escorrendo na casca da fruta. Me fez calar por instantes e engolir seco.
– Tá bem – depositei a faca e a colher. A senhora quer que a gente acenda os “senkôs”? Vamos lá, Cris? – convidei minha irmã e fomos queimar os incensos no quarto nublado pela fumaça.  A armação dourada do “butchidã” protegia no interior a igrejinha negra, de portinholas escancaradas, ostentando os nomes de nossos antepassados nas tabuinhas vermelhas com ideogramas de ouro. Uma toalhinha de crochê, trançada pelas mãos de minha velha, acomodava o conjunto todo. Ao pé, uma mesinha improvisada expunha os pratos de comida que minha mãe levara o dia todo preparando. Como enfeites, os arranjos de flores e frutas com duas canequinhas de saquê.
– Acende pra mim – a minha irmã me solicitou, enquanto lhe estendia as duas varetinhas de “senkôs”. Risquei o fósforo, ateei fogo, ela os abanou e apagou as chamas. Fincou-os na terrina cheia de cinzas.
– Agora você… e não assopra que não pode assoprar – minha irmã me alertou, como se eu não soubesse daquele detalhe. Esperamos a brasa intensa expelir a névoa ardida. Fiz o sinal da cruz num gesto sincrético e esdrúxulo, misturando crenças que aprendera.
– Onde está o nome de “otossan”? – me perguntou.
– Eu sei lá, respondi. Pra mim é tudo grego.
– E todos esses sinais aí?
– São nomes de avós, tios, parentes. Dizem que tem até o nome de uma tia que viveu em 1500 ou 1600 e era filha do prefeito de Okinawa. Se suicidou ou coisa parecida. Dizem que por amor…
– “Otossan” era mesmo desse jeito? – indicou o porta-retratos num dos cantos do oratório.
Olhei a fotografia de meu pai: o cabelo à escovinha, o nariz largo, sobrancelhas escuras, lábios carnudos e um pescoço imenso metido na gola levantada do jaleco bordado nos ombros. A tez clara e a expressão de um todo severo, militar, embora melancólico.
– Mais ou menos. Me lembro só de algumas coisas e dos cascudos que ele me dava.
– Você sabe como se conheceram?
– Quem?
– A mãe e “otossan”.
– Acho que quando chegaram do Japão para trabalhar na roça.
– Mas se conheceram assim… como conhecemos amigos, namorados?
– Como?…
– Você sabe… – minha irmã ficou atenta – não foi por “miai”?
– Por “miai”? Onde você ouviu isso, boba?
– Ora, todas as nossas tias foram casadas por “miai”. Têm algumas que só conheceram o marido no altar. A mãe do Rubens casou com o pai dele porque a irmã ficou doente no dia do casamento, não lembra? Por que a mãe ia ser diferente?
– Porque nossa mãe é diferente, oras. E chega dessas besteiras! – argui com raiva. Vamos, vamos voltar pra cozinha, sua boba!
Retornamos à cozinha cheia de irmãos e cunhados. Há centenas de anos, o quinze de julho é reservado aos mortos e a comemoração juntava a família imensa, rediviva. A imagem desbotada de meu pai só servia para reunir a conversa em torno da mesa, onde comíamos à contemplação de nossas raízes.[†]
Mas a fotografia me incomodara e aquele som miava: “miai, miai, miai”. Vasculhei os olhos, o piscar de minha mãe. Seu corpo mirrado já não se expressava: resignava-se, como me pareceu, resignou-se um dia. E então, meu pai vestiu-se de novas feições, medonhas, atrozes. Amaram-se?
– “Ocassan”…, balbuciou minha irmã mais velha.
“Ocassan”: acaso mãe por acaso? E por que então a reverência? Aquela mulher se vergara aos treze filhos sem amor? Ou sequer pensava nisso?
– “Ocassan” não vai tirar a comida? – ouvi minha irmã mais velha repetir.
Minha mãe se levantou, foi ao “butchidã”, ajudei a recolher as oferendas. Ela vacilou ante a imagem de meu pai. Juntou as palmas das mãos, baixou os olhos e curvou a cabeça. Cumprimentou seu senhor? E acendeu um par de “senkôs”. Senti que aquela  manifestação expunha a realidade de minha mãe e a fantasmagoria de meu pai.
– Como a mãe conheceu “otossan”? – perguntei de surpresa.
– Ora, conhecendo…
Calamo-nos no silêncio e na solidão de quinhentos anos dependurados nas tabuinhas cravadas à bico de ouro. Minha mãe não nos sustentava, sustentava uma herança, uma linhagem.
Voltamos à mesa, à conversa entrecortada.
– Agora eu posso comer o mamão, não posso? Já que todos os mortos estão satisfeitos com o que nós, os vivos, suamos para ganhar.
– “Bakataré”! – bradou minha mãe.
É, talvez eu fosse tolo o bastante pensando nisso. Cravei a faca na casca amarelecida do mamão, casca sem perfume, com fel. Cortei mais fundo o fruto aéreo, até lhe abrir o coração vermelho, maduro, carregado de heranças feito caroços, negros, no entanto.

Paulo Akira Nakazato


otossan – pai

butchidã (originalmente “butsudan”) – oratório de portas, onde se penduram, na parede do fundo, uma série de tabuinhas com os nomes dos antepassados e  na entrada se coloca uma terrina com cinzas em que se fincam os incensos chamados “senkôs”, e em frente acomodam-se as oferendas, tais como frutas e doces juntamente com copinhos de saquê;

bakataré – bobo, tolo, idiota

senkôs – incensos de cor verde-folha que exalam cheiro forte e fumaça intensa;

 miai – processo de casamento em que os noivos, ainda crianças, são prometidos um ao outro por acordo firmado pelos pais

ocassan — mãe, progenitora

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