Como poderia esquecê-lo, eu, médico recém-diplomado, interno no Hospital das Clínicas, o único pronto-socorro de São Paulo à época? Era 1960… Diploma pendurado na parede, anel de médico ganho da tia mais velha, toda a teoria da emergência médica engavetada na cabeça. Na mesma gaveta só incontrolável temor. E quanto temor!
Se atendia um paciente acordado, consciente, colaborador, brotava aquela impecável história clínica seguida de minucioso exame. Tudo bem descrito, até em boa letra, ordenadamente, terminando com hipótese diagnóstica e receita caprichada. Mas isto me fazia médico seguro? Jamais. Médico é quem resolve encrencas em emergências, atua rápido, decide prontamente e não dispõe de tempo para se deter em minúcias. Salva vidas num instante, ou perde-as porque o instante deixou de sê-lo: durou mais do que devia. Médico é aquele que age ligeiro, medica com uma atitude firme e audaz, nunca se deixa derrotar. Uma questão de vida ou morte em que se contam os segundos, olhos experientes, bagagem que se adquire apenas no campo de batalha do pronto atendimento, nunca na comodidade dos consultórios: ninguém morre neles; socorrista é soldado no front de batalha.
Não há teoria possível, compêndio o mais volumoso lido e relido que desfaça o pavor do calouro frente a corpo inerte. Corpo incapaz de dizer o que sente. Corpo sem queixa. Diploma só seria merecido se aprendesse num relance a perceber que aquela convulsão que o parente aflito traduzia “doutor, foi um ataque; meu paizinho nunca teve isto antes”. Aquele corpo inerte, no qual só se ouviam os batimentos cardíacos! Mal dava para perguntar: tomava insulina? Tinha pressão alta? E se fosse um acidente vascular cerebral? Hemorragia tão grande que arrasou o cérebro? Bebeu? Bebia álcool? Seria coma hepático ou coma diabético? E se não há parente para dar alguma pista? Febre? Uma septicemia? Meningite? Vamos doutor! Adivinhe, mas rápido. Não basta medir a pressão. Pressão pode subir após uma convulsão. Não dá tempo para uma ausculta pulmonar. Coração audível, mas pode ter tido um infarto que gerou a convulsão. Doutor não dá tempo de contar um, dois, três…. Morre-se antes disto….
Santo Pé de Valsa. Tábua de salvação de médico calouro. Entrava pela porta do pronto-socorro num vozerio expedito e até zombeteiro: “Tá entrando um AVC”… (acidente vascular cerebral era chamado só de AVC), “Doutor, este é bravo”…. “É AVC hemorrágico”…. “Doutor, é só pós convulsão, mordeu a língua, não é hemorragia na boca”…. “Foi tentativa…. Tomou inseticida”… “Coma etílico; glicose na veia dele e logo levanta”….“Acorda daqui um pouquinho”…. “Deixa ele aí amarrado na maca pra não cair”….
Pé de Valsa era anos e anos de experiência arguta. Diagnosticava só de ouvir a respiração, ver se o corpo se mexia ou ficava estático, ouvir se emitia som entre a saída da ambulância e o sacudir da maca até a porta. Não mais do que dez passos entre o veículo que transportava e a entrada da emergência. Pé de Valsa não precisava de estetoscópio, nem de medir o pulso, mesmo porque não tinha tempo para isso. Eu me pergunto quanto de sua habilidade era inata, impressa em seu DNA, como o faro dos caninos e a percepção visual das corujas, ou adquirida pela repetida demanda diária? Certamente não basta o vigor dos genes da semente se a terra não for fértil para frutificá-la.
Era assim Pé de Valsa, sem titubear, diagnóstico veloz como um raio, décadas de observação. Errar? Jamais! Pé de Valsa era sempre ouvido, até sutilmente, mesmo que nós os calouros disfarçássemos fingindo-nos de surdos. Éramos orgulhosos e tão presunçosos como o tamanho de nossa ignorância e inexperiência. Santo Pé de Valsa! O que seriam aquelas noites não dormidas da emergência médica sem você!
Alto e esguio tinha um certo balanço de corpo (daí o apelido), acho que por algum defeito congênito ou talvez sequela de poliomielite (naquele tempo ainda não havia vacina). Pé de Valsa era negro e irradiava simpatia. Quem não o conhecia poderia imaginar estivesse bêbado, mas estava sempre sóbrio em seu avental mal abotoado, limpo, de bigode e cavanhaque tortos, como se fosse um bebum fazendo caretas, sorrindo disfarçadamente. Talvez se sorrisse em toda amplidão assustasse os acompanhantes aflitos dos pacientes, ou, mais provavelmente, não devia ter tempo para sorrisos.
Ninguém lhe perguntou como adquiriu toda aquela vivência profissional. Pé de Valsa jamais ganhou diploma. Talvez nem tenha terminado o curso básico. Mas que “doutor” era ele, na vida como simples porteiro do pronto socorro do Hospital das Clínicas. Ninguém jamais duvidou de sua precisão diagnóstica. Pior, jamais lhe agradeceram e assim “doutor” Pé de Valsa viveu e se aposentou. Doutor emérito que ensinava sem ter recebido “honoris causa”…. Por quanto lhe devo, impossível esquecê-lo, caro mestre.
Eder, sua experiência e formação de excelência se associam ao exímio contista e retratam como se faz um Médico – com maiúsculas. Pé de Valsa, com o faro dos caninos e a percepção visual das corujas, representa o estofo, que o conhecimento aprimora. Belo relato.
Bonita homenagem, Eder Quintão. Pode ser apenas um conto, mas suspeito, pela emoção que passa, que tenha sido realidade, talvez uma crônica.
Eder, a crônica passa o sofrimento dos médicos diante do ser humano que precisa dele. E Pé de Valsa era um médico…
O médico podia ser calouro, mas já possuía o olho de escritor: captou e descreveu com maestria o personagem Pé de Valsa. Deu-lhe outra vida e o reconhecimento merecido. Parabéns Dr. Éder
Eder,
adorei a figura do Pé de Valsa. Claramente identificado de corpo e alma. São tantos os brasileiros e tantos pés de valsa no mundo, incógnitos , que salvam vidas com talentos que desconhecem. Eles são! Apenas SÃO! Bela homenagem “Ao mestre com Carinho”! ( lembra o sidney pottier como professor?
Eder, lembrando, caso nao leu , vale a pena ler o livro de Ian McEwan SABADO.
a vida de um médico em um único dia. Fascinante!
Putz! O território não cabe no mapa! 🙂
Éder, você me fez lembrar das crônicas dos grandes escritores que avidamente eu lia nos jornais. Retratos de seres humanos, plenamente humanos que encontramos por debaixo desse amontoado de imagens inúteis. Parabéns pela lembrança.
Akira: apenas uma história real com pitadas de exagero… Puro jornalismo.
Eder
Eder, eu tive a honra de conviver com um Pé de Valsa. Papai era médico ortopedista e o nosso Pé de Valsa era o motorista da ambulância da Guarda Civil. Revivi um pouco da minha história com o seu relato. Linda homenagem aos Pés de Valsa da vida!