Pão, menopausa e hemorragia, por Adília Belotti

“Quem pensaria que o velho tinha tanto sangue em si?” Ela enrolava e desenrolava a frase terrível de Lady Macbeth na cabeça, enquanto tentava dar um ritmo menos preguiçoso às passadas da esteira. Shakespeare, era digno, ao menos. Sim, quem pensaria…no início, ela tinha achado que era um óvulo retardatário, inocente, atrasadinho…esquisito, mas ela vivia sempre pronta para acolher esquisitices. A amiga tinha dado o alerta na academia: ‘nada a ver com menstruação, sua maluca, é uma hemorragia, eu tive, em Paris, sozinha, no ano passado. Foi um horror! Não sei como ninguém conta para nós que estas coisas vão acontecer!”

‘Hemorragia’, as palavras, esse esforço de síntese que reduzia a experiência de viver aquilo que podia ser dito. Ela suspirou, engolindo uma vontade maluca de chorar. Sai a mulher menstruada que uiva para a lua, entra a mulher na menopausa ligeiramente aflita já e imaginando, se fosse morrer esvaída em sangue, com que roupa queria ser enterrada, flores nem pensar, só uma única orquídea, sanguínea…

Melhor ligar para o médico, ao contrário de todas as menstruações de que conseguia lembrar, essa hemorragia vinha em jorros, feito coisa cortada: ‘credo, igualzinho aqueles filmes de guerra’, é, consola a amiga, rindo, garrafa d’água eterna na mão, ‘faz parte da longa relação de coisas que ninguém nunca diz sobre a menopausa’, “e sai já dessa esteira, você vai se desmilinguir!’.

Tinha que concordar, desmilinguida ela se sentia, e exausta; lá no fundo, uma cólica que a fez lembrar-se de si mesma menina, dos absorventes de primeira geração, que a gente vestia junto com uma calcinha cheia de ganchos, que hoje seria vendida, por puro desconhecimento da função original, numa loja de artigos eróticos para sadomasoquistas; ah, e da bolsa de água quente, acessório indispensável em tempos de raros e inócuos analgésicos. Chegou em casa, foi no armário da filha, pegou dois pacotes de absorventes noturnos, colocou dois, três, quatro é mais seguro, e se comprasse fraldas? Muita humilhação! Ligou para o médico, não conseguiu falar: ‘o doutor liga no final do dia, fique tranquila’, ela ficava, que mulher afinal tem medo de sangue?

Deitou, disposta a tirar um cochilo, precisava trabalhar e o dia corria…mas dormiu, e sonhou:

Era uma velha tão velha que o rosto parecia um mapa da mais desértica região da terra. Acordou um dia, vestiu sua saia de flores, a bata branca, calçou as chinelas, lavou o rosto com água gelada, prendeu os cabelos brancos fiapentos num coque e coletou numa tigela de barro seu sangue, urina e fezes. Pegou com cuidado a tigela, abriu a porta da casa e mergulhou no mato.

A noite ainda era fria e o silêncio de antes do amanhecer não amedrontou a velha, ao contrário, tanta solidão pareceu agradá-la.

Ela andou, andou, até chegar a um charco. Agachou-se, ajeitando a saia, e começou a mexer na tigela. Da lama recolheu terra, caracóis, lesmas, restos que ela ia misturando às suas entranhas, amassando e sovando a terra com as mãos até que não restasse nem um vestígio de nojo, de aversão ou repulsa. Ela suava, a pele cintilando, um fio de alegria escorrendo do canto da boca. Quando ouviu o pio do primeiro pássaro, parou, fez uma bola com a massa de terra e colocou-a sobre uma pedra.

Cruzou os braços e esperou. O primeiro raio de sol veio e engravidou a massa que cresceu e cresceu…

A velha embrulhou com delicadeza a massa num pano branco e caminhou de volta para a casa. Abriu a porta, foi até a cozinha, deixou o pão em cima da pia e cantarolava enquanto ia tirando tênis, calça e camiseta. Ligou a água do chuveiro e deixou o primeiro jato de água fria provocar-lhe arrepios nas costas. Sentia-se corajosa.

Saiu do banho, vestiu-se, colocou o pão no forno e água para fazer um café. Foi quando ouviu a campainha tocar. A empregada não tinha chegado e ela correu para abrir a porta do apartamento. “Oi vó”, “oi querida, mamãe foi trabalhar?” “Foi, subi sozinha!”, “Muito bem, que valente você é!”, as duas riram…

“Tem pão quente, vó?”

“Fiz esperando por você, porque sabia que você vinha, está no forno, meu bem, já já fica pronto…”

 

2 comentários

  1. Adília, seu texto é ousado, sai dos limites do esperado, do comportado.
    É muito forte: a mulher que sonha que é uma velha e que sofre um processo de transformação, transmutando suas vísceras em pão que oferece à neta.
    Um milagre, a transmutação da morte em vida.
    Sangue que não serve mais para nada, só para avisar de um possível tumor, é amassado com a terra para ser fecundado pelo sol!
    Lindas e poderosas imagens.
    Encontro corajoso com um momento de nossas vidas: ou mudamos ou ficamos rancorosas e assassinas, Ladies Macbeth sem dignidade.
    A narrativa é suficiente enigmática para criar uma expectativa no leitor, que tem que acessar vivencias muito intimas.
    O deslizamento entre o sonho e a realidade, num continuum, recurso econômico e eficaz, muito bem resolvido!
    Você exige muito do leitor. Parabéns!

  2. Poxa! até fiquei meio enjoado…
    Quantas temporalidades enfiadas em cada frase, que a autora vai desembrulhando – e obriga o leitor a desembrulhar também. Do banal ao sublime.
    E que imagem impressionante é construída! Lembrei de Polanski !
    Ele filmou Macbeth há décadas – e a cena inicial das mulheres velhas desembrulhando uma mão [de um pano] nunca me saiu da cabeça.
    O texto de Adília assusta – porque tem aquela potência de tocar fisicamente. Teria que ser impresso pra que o papel – num pulo – saltasse longe de nossas mãos!

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