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Os mundos de Bettina Lenci
ou 12 crônicas sobre notícias sem importância

Mundo I “Pensar é só livre pensar”

Essa frase de Millôr Fernandes me acompanha, como dizem, desde que me conheço por gente. Gosto de pensar. Para pensar é necessário alimento. O alimento é a informação. A informação se apresenta a cada microssegundo em que se está vivo.

Faz tempo que as informações são repetitivas, firmes como rochas em opiniões polarizadas. Não há espaço para um terceiro lugar opinativo sem correr o risco de ser insultada como sendo politicamente incorreta. Aliás, argumento fácil para se fechar um argumento! É quando o novo ângulo de se ver um tema morre no vale da ignorância.

Será que a percepção, outrora uma colaboradora na formação de uma visão de mundo mais ampla, morreu ou simplesmente perdeu-se o interesse de indagá-la?

Qualquer que seja a razão, nas próximas crônicas (doze) escreverei – sob o título de MUNDO – a tentativa de manter minha percepção acordada.

Serão doze textos seguidos nos quais busco olhar nosso mundo sob um ângulo um tanto mais diversificado.

Explico: recorto e guardo informações inúteis até encontrar outras da mesma categoria, ou seja, inúteis como informação.

O jogo consiste em interligá-las e observar onde as duas informações inúteis podem gerar uma terceira informação que nada mais é do que uma hipótese. Uma hipótese ainda em formação, sim, mas que um dia poderá vir a ser uma informação útil. 

Esses recortes, geralmente, são teorias que esbarram na ficção científica: informações que nada acrescentam para o nosso dia a dia, porém indicam as buscas incansáveis para descobrir de onde viemos, levantar hipóteses, pensar e até (por que não?) concluir alguma coisa.

Talvez, a insana polarização atual leve os cientistas a se concentrarem em novas teorias que ao nosso primeiro olhar parecem absurdas e inúteis.

Senão, vejamos:

Título no jornal: “Corpo de morango e 20 braços: o novo animal marinho”. 

“Cientistas dos Estados Unidos e Australianos descobrem, nas profundezas do mar congelado da Antártica, um animal marinho desconhecido, com 20 braços e corpo semelhante a um morango”. E segue a conclusão:” os estudiosos notaram que sua capacidade de classificar adequadamente vários membros distintos adicionais dentro do gênero (Promachocrinus), só agora se tornou possível graças a um exame de DNA e morfologia física desses organismos”

Ok! Indago: a informação acima tem algo a ver, mesmo distante anos luz da realidade, com a informação que segue abaixo?

“Pesquisa investiga como característica viral de elementos genéticos chamados Mavericks pode contrabandear” DNA.” 

“Os biólogos entenderam os contornos das regras de herança há mais de um século: os genes são transmitidos de pais e mães para filhos, dentro das espécies. Nos anos mais recentes, porém, eles também descobriram genes que desviam e saltam lateralmente entre as espécies- sejam os de sapos em Madagáscar que vieram originalmente das cobras, ou genes anticongelantes encontrados em peixes de água fria, como o arenque, que foram transferidos para peixes da família Osmeridae. 

O artigo é longo, mas intrigante, vale a pena prosseguir:

“Elementos genéticos chamados Mavericks (algo como dissidentes, contrabandistas de DNA) foram detectados em uma ampla gama de animais, tanto vertebrados quanto invertebrados e apresentam muitas características encontradas nos genomas dos vírus”.

Será que os tais Mavericks – elementos genéticos que saltam lateralmente – se transmutaram para o Morango de vinte braços, milhões de anos atrás, a exemplo do sapo de Madagascar que recebeu o gene da cobra tornando-os da mesma espécie, mas com formas diferentes?

Será que carregamos em nós Mavericks capazes de se transmutar para a mesma espécie, o Homem, e assim criar uma nova linhagem de gêneros?

Mundo II em Suspensão

Declaro-me em estado de suspensão! 

Tenho escrito crônicas a partir de notícias pouco importantes, mas que, justapostas, talvez possam criar um terceiro ângulo ou uma nova conclusão sobre essas informações inúteis.

Este jogo nasceu na tentativa de preencher os vazios da minha alma. Com esforço, busco recuperar algum sentido poético que esteja perambulando acima da realidade crua que passa ao meu lado, qual nuvem escura anunciando tempo de raios e trovoadas.

Poesia não se explica. Ela vem para nos descortinar as amplas possibilidades, as infinitas versões do sentir. É possível captá-la em uma pessoa à beira da morte – uma realidade inconteste, um sentimento que escrutina o solene final de uma vida e o torna uma poesia sublime.

Poesia fala o óbvio de forma leve para quem a reconhece: o rio nasce e deságua no mar, portanto, nos permite pensar, sem lógica aparente, na vida. Um entardecer anunciando a hora do Agnus Dei, por exemplo, é uma imagem inspiradora para a poesia mesmo se os sinos não tocam.

Poesia é uma realidade expressa sem ajuda da razão!

Acho que o mundo está abrutalhado. Somos obrigados a nos proteger, nos encapsular por conta de notícias ásperas e pontiagudas que ocupam as horas inteiras do dia.

Não temos como passar incólumes sobre os principais temas da atualidade. São por demais excessivos e ambivalentes, portanto qualquer possibilidade de solução é contraditória em si mesma!

O resultado, quer me parecer, leva a uma monotonia pela repetição diária!

A título de exemplo, recolhi algumas manchetes:

“Prefeituras na Coreia do Sul bancam festas para turbinar natalidade”.

Este título informa que festas, na Coreia do Sul, favorecem a natalidade, seguida de outra informação:

”Ciência desvenda reprodução assexuada. Homens que se cuidem: podem ficar ociosos!”, Fernando Reinach adverte.

Segundo a minha percepção, a teoria de Fernando Reinach esbarra nas intensas discussões suscitadas com o filme Barbie. Na minha opinião (claro está), é possível subentender-se que o Ken, eterno namorado de Barbie, não possui um pênis enquanto ela vai atrás de uma vagina para se tornar uma mulher de verdade.

OK! digo. Contudo, cinco dias depois, o seguinte título no jornal: “Sexo ou Partenogêse”? 

Esta Informação não contradiz a anterior, (os homens que se cuidem…) mas, só de pensar na hipótese, ainda que remota, da produção de um embrião sem a fertilização, me desconcerta!

Existe alguma relação entre as festas favorecendo a natalidade, a partenogêneses e Barbie x Ken.?

Penso: que chatice essa busca de povoar o mundo de maneira científica. Não seria mais simples o prosaico encontro do óvulo com o esperma, camisinha, tabelinha, pílula, infertilidade; até mesmo a abstinência ou não ter inclinação para o sexo do jeito comprovadamente funcional?

Ouso sentir que o mundo, além de suspenso, está suspeito!

Mundo III Suspeito

Os textos: Mundo I Pensar é só livre pensar e Mundo II em Suspensão criei, segundo a minha visão de mundo, sem buscar aprovação ou ter razão. São pensamentos cotidianos, subdivididos em várias crônicas onde tento dissecar informações inúteis que poderiam preencher o vazio que vem me assombrando como habitante global que sou e todos que me leem o são também.

Assim sendo, hoje recortei as informações inúteis do dia e escrevi O Mundo III Suspeito. Ei-las:

 “Família portuguesa pode ter dividido casa com índios”

“Fragmentos de louças portuguesas e cerâmicas indígenas de mais de 400 anos encontrados durante escavações na mata de Cubatão. O acervo surpreende por indicar que uma família portuguesa de posses residiu por décadas na área, possivelmente compartilhando o imóvel com índios. Concluem os arqueólogos: “Nossa hipótese é de que os moradores portugueses conviveram com os índios, mas não na condição de escravos, provavelmente o dono português se casou com uma indígena”.

Me perdoem os arqueólogos: podem querer ser politicamente corretos e inserir os portugueses do século XVII como amiguinhos dos indígenas, visto que encontraram indícios de uma família heterogênea, harmoniosa e próspera! Ora, tal descoberta não indicaria a condição de escravos a qual os portugueses, colonizadores, submeteram a população indígena, dizimando-a?

Por em dúvida que o português dividiu sua casa com o índio torna a Informação inútil uma vez que a verdade histórica do Brasil quando colônia de Portugal, tornou a população indígena escrava em seus engenhos de açúcar e afazeres da casa senhorial.

Outra informação

“Cientistas pedem para a Alemanha devolução de fóssil” 

“Pesquisadores brasileiros publicaram uma carta pedindo ao governo alemão a restituição ao Brasil do fóssil do dinossauro Irritator chalengeri, contrabandeado do país nos anos 1990. Por lei, essas descobertas pertencem à União e não podem ser comercializadas,” nos conta a informação.

OK! Uma informação útil, porém, seria saber se os ladrões foram julgados e presos ou continuam ungidos pela ignorância, impunidade e ganância!

E vejam a analogia com a notícia inútil acima:

“Uma caverna em MG escavada por preguiças-gigantes” 

“Pesquisadores da Vale prospectavam uma área da mineradora perto do Parque Nacional da Serra do Gandarela na Grande Belo Horizonte onde encontraram uma relíquia da época em que mamíferos pré-históricos gigantes habitavam a região há 10 mil anos”

Tentei resistir, mas não consegui deixar de combinar esta informação com o Brasil atual:

“os especialistas encontraram uma caverna de 340m de extensão com túneis e salões (seria o congresso?) escavados por preguiças-gigantes, (congressistas?) em busca de abrigo (da justiça). Na chamada paleotoca há marcas de garras compatíveis com a das preguiças de dois dedos (hum! garras de só dois dedos!?). A caverna foi classificada como de máxima relevância e, por isso, tem proteção permanente garantida por lei.”

Caro leitor, até em informações inúteis pode-se encontrar informações úteis!

É isso aí, bicho!

Mundo II em Suspensão

Darei seguimento às minhas crônicas intituladas Mundo I Pensar é só Livre Pensar, Mundo II em Suspensão e Mundo III Suspeito perseguindo notícias irrelevantes para o momento em que nossa Terra é olhada como se fosse um objeto. Um olhar objetificado por conta da moribunda alma produtora, única capaz de embutir uma realidade mais compreensiva e humana do mundo contemporâneo.

Essas notícias aleatórias indicam que não sabemos ao certo de onde viemos e – ninguém voltou para nos contar para onde vamos! No momento, fico com a intuição de que estamos nos ocupando do futuro de nada.

Assim, recortei a informação inútil abaixo:

O mistério da ponta de flecha feita de meteorito” 

“Segundo cientistas, a análise do objeto da Idade do Bronze indica que é feita de ferro originado de um meteorito. É possível criar uma imagem digital radioativa de qualquer amostra e também encontrar isótopos de vida relativamente curta, produzidos apenas no espaço.”

“Estima-se que a sua formação foi por volta de 1.500 anos a.C.”

A flecha tem 29 milímetros de comprimento e pesa 2,9 gramas, objetos feitos de ferro meteorítico são extremamente raros!

Longe de mim avaliar a importância do achado mas quer me parecer que a flecha é microscópica: 29 milímetros de comprimento?

Na mesma linha de descobertas e análises, desta feita vinda dos EUA:

“Amostra de asteroide pode indicar origem da vida”

“A amostra – rochas e poeira recolhidos do asteroide Bennu – chegará a bordo da nave Osiris -Rex, a primeira missão americana do tipo, que foi lançada em 2016 e alcançou o rochedo espacial em 2018 e recolheu o material em 2020.

Chegará à Terra em setembro de 2023, segundo informação oficial do Centro Espacial Johnson da Nasa, Houston”.

Curiosamente o asteroide então volta a empreender sua longa viagem de volta de onde veio e mais, informam os cientistas: “Não esperamos que haja nada vivo mas (sim) os componentes básicos da vida e isso é que motivou a coleta deste tipo de asteroide; compreender quais foram os precursores que podem ter fomentado a vida em nosso sistema solar e na Terra”

Turismo de Ovnis

Depoimento de militar citando trabalhos dentro da base, aguça curiosidade entre aficionados pelo tema”.

A notícia inútil é a seguinte:

Grupos de caravanas e uma comunidade de apenas 20 casas compõem, desde os anos 90, uma cidade chamada Rachel, perto de Las Vegas. Aposentados americanos lá se instalaram porque acreditam que os restos de Ovnis estão sendo guardados na base militar mais enigmática do mundo – a Área 51. Em testemunho, um ex-oficial da inteligência das Forças Armadas Aérea, David Grusch, declarou ao Congresso Nacional que, há décadas, lá se escondem as evidências de aeronaves extraterrestres e “restos biológicos não humanos”. Mais de 55.000 pessoas visitam a cidade todos os anos para tentar chegar o mais perto possível da área 51. Além disso, 135 milhões de americanos, em 2021, já endossam a hipótese alienígena.

Estas informações, a meu ver, não podem ser tratadas como informações úteis. Elas acrescentam, sim, ao nosso desconforto, ameaças de vida ou morte que nos rondam no cotidiano. Só fazem aumentar a ansiedade e medo de um futuro sem esperança; não se percebe encaminhamentos para que, hoje, a ameaçadora capacidade dos humanos de destruição, tomem um rumo que proteja o nosso único, belo, concreto e real mundo.

As hipóteses de futuro caem no capítulo ficção científica. Não acho impossível trazerem informações verossímeis, mas enquanto não há certeza quanto ao futuro de nada, a Humanidade espera respostas que possam aliviar seu sofrimento tanto a.C. como d.C. e penso eu, (claro está!) que fenecerá sem tampouco encontrar certezas de nada.

Mundo V Crível

Confessei, nas crônicas anteriores porque vem me faltando inspiração poética. Tento repô-la recortando informações inúteis e dando trato a elas.

Com este pensamento altissonante em mente, expresso, através da escrita, a solução que encontrei – espero temporária – como preencher a ausência do sentido poético da vida; atenho-me a informações sem importância capital para a humanidade.

Assim sendo:

No espaço de um mês, pinçei, entre tantos assuntos, alguns irônicos e, portanto, dignos de nota. 

EUA devolvem à Itália carta de Colombo de 1493.” 

“Documento que registra descobertas do navegador havia sido roubado de biblioteca em Veneza”.

Acho graça porque este documento já deve ser de conhecimento do universo googleano. Por que o pergaminho original é tão importante na era tecnológica dos séculos por vir?

Em uma manchete garrafal:

“Estátuas sem cabeça, dilema para os museus.”

Indaga-se se a cabeça de Septímio Severo, imperador romano, exposta no museu Ny Carlberg Cliptotek de Copenhague estaria ligada ao torso de bronze do imperador exposto no Metropolitan Museum of Art de Nova York.

Conversa vai, conversa vem, o museu de Copenhague já está achando que a cabeça de Severo, talvez não seja mesmo aquela que se juntaria ao torso em Nova York, enquanto a Turquia alega que a escultura de dois mil anos foi roubada deles – o que bem acredito. Imaginaram o dilema dos museus neste momento em plena guerra entre Rússia e Ucrânia? Quantas cabeças já não foram separadas do corpo, desde que o imperador Septímio imperou de 193 d.C até 211 d.C.?

Estas duas informações, apesar de inúteis, são divertidas e curiosas. Contam fatos verídicos como o roubo em si, mas divertido seria descobrir o nome do ladrão e porque o fez.

Quanto às cabeças, provavelmente também fruto de roubo, decepadas e provavelmente “coladas” em corpos de mármore que nada têm a ver com a história, seria interessante saber se os corpos dissipados foram encontradas entre os escombros da Antiga Grécia se, por exemplo, suas cabeças “guilhotinadas”, – apesar de nascidas em figuras mitológicas gregas- não seriam importantes para os romanos implantá-las em corpos vencedores de suas guerras históricas.

Nada mais fácil do que simbolizar mitos! É só manter ou cortar cabeças conforme o interesse de poucos no momento!

Mundo VI Globo Luz

Quem sabe este texto, finalmente, seja uma informação útil aos leitores.

Encerro esta micro antologia de seis textos sobre uma visão de mundo recortada em jornais que trazem, diariamente, informações que, na minha opinião, são inúteis, algumas divertidas, outras irônicas, e outras assustadoras. São textos escritos a partir do dia que a inspiração poética deixou minha alma.

É possível que – desde que pousei meu olhar sobre o globo terrestre em minha escrivaninha de criança – algo tenha se cimentado em mim.

Este globo era de plástico, suas fronteiras outrora delimitavam as fronteiras coloridas do mundo conhecido que eu tinha que decorar para a prova de história.

Hoje, observo muitas dessas fronteiras: desapareceram do mapa e dividem países em espaços maiores ou menores do que no passado.

Este globo silencioso, em contínua mutação, inclinado sob um suporte de ferro enferrujado, provido de uma mola que o faz girar, ilumina-se com uma pequena luzinha em forma de gota que troco, pois de vez em quando, escurece o mundo!

Nesse momento fugaz, procurei aprofundar-me sobre uma possível razão do porquê da ausência da poesia.

Em voz alta ouvi minha alma desamparada:

“O nosso globo é uma bola que gira depressa demais, come vorazmente o tempo, e é dirigido por pessoas consagradas com o poder, sem a menor consciência que a Terra é um “Ser” vivo finito, onde vivem seres vivos”

(Cruzou esta minha afirmação, a analogia brilhante e inesquecível de Charles Chaplin acusando Hitler de brincar com o globo terrestre sendo girado com seus pés).

O poder tudo pode! Guerras irracionais, povos desenraizados, tráfico humano de gente e órgãos, política da pilhagem encoberta pela corrupção desalmada. Excessos inconscientes entre quem tem muito e a penúria consciente de pobres famintos, em comum, o lixo de ambos, a boiar em águas azuis cristalinas ou valetas mal cheirosas. O povo! ah! pobre povo: covardemente torturado com discursos traidores do dito e não cumprido.

O mundo suspenso; a América Latina, qual o nosso futuro?

Ameaças não faltam, chegam de todos os lados: da direita, da esquerda; dos moderados e democratas, ausente a convicção!

Extremistas, fascismo, populismo, ilusões consagradas para os perdedores e certeza de ganhos para os incentivadores.

Estes são alguns dos tantos tópicos da realidade do nosso mundo, antes e depois de Cristo.

É com a percepção, a verdade e ou realidade, nua e crua do Mundo em Suspensão, Suspenso, Crível, incredível ou Suspeito que a humanidade terá que, renovadamente, aprender a ter esperança de que sua vida está segura de eventuais interferências catastróficas.

O olhar poético para a Natureza que teima em não nos deixar, o Homem que teima em viver, a criança que teima em entender, os velhos que teimam em saber, tudo exemplifica a vontade e a vitalidade de sobreviver enquanto o mundo nos premiar com a vida tendo, como contraponto, a poesia e a leveza que o nosso mundo, sem sombra dúvida, contem!

Mundo VII A Virada do Tempo

Imaginem – aqueles que nasceram no século XX – como um garoto, meu neto, que completa 22 anos hoje, vai festejar o seu aniversário!

O convite convoca, via whats:

“Gente, não tô acreditando. Sou século XXI. Nasci no dia 1/1/2001. Vou comemorar meus 22 anos com uma festa, mas só entra quem estiver fantasiado de século XXI.”

Com que roupa, uma vovó, – 7.8, século XX – século que vem se distanciando cada dia mais dela – deve se fantasiar?

Esta vovó ainda consegue se lembrar da histórica passagem daquele ano. Uns óculos de plástico, o número 2000 reluzente sobre o nariz, vestida de branco. Ao pular as sete ondas para recepcionar o ano novo assustou-se ao se dar conta de que o futuro teria mais 100 pela frente!

Ela recorda, também, sua maior preocupação: o “bug do milênio”. Seria sua conta bancária zerada na passagem do ano 2000 para o 2001?

Seria sua conta bancária, simplesmente apagada da memória do computador?

Mas, neste dia 1 de janeiro de 2023, olhando para o seu guarda-roupa, a vovó não conseguiu definir um estilo que seria emblemático para o século XXI.

Poderia ser qualquer um: jovens expondo-se, nu em pêlo? Homens com adereços femininos e vice-versa.? Cabelo armado afro, chanel, carecas raspadas, barbas curtas e médias ou ainda cabelos repartidos, pretos de um lado e roxo do outro? Uso de bermudas para festas, jeans rasgados, shorts para meninas com barriga de fora? Havaianas, tênis ou coturnos para acompanhar?

A vovó, não querendo envergonhar o seu neto, lembrou de uma fantasia que lhe sobrou de antigos carnavais: de índia! Refletiu, buscou a imagem bem brasileira ao lançar seus olhos para o cocar:

– Realmente, não me ocorre nada mais século XXI do que a indumentária do índio, com suas penas e nudez, que ainda sobrevive, heroico, neste século.

Matutou mais um tanto:

– Outra hipótese seria vestida em farrapos, à moda de pobre, suja e sem sapatos; esta seria uma fantasia “in” para bem representar este século. E, nesta linha crítica de pensamento, lhe ocorreu outra analogia: vestir-se de soldado, fantasia sempre atual para simbolizar um mundo ainda e continuamente em guerra neste século.

Mas descartou as hipóteses anteriores e concluiu que a roupa mais icônica e – para não ser motivo de chacota – seria a fantasia de uma Avatar ou heroína, como Jean Grey, a Fênix, mais apropriadas para a finalidade desejada pelo neto.

Ambas cobertas por um “training” – originalmente criado para atletas – hoje, moda absoluta nas ruas das cidades. De lycra, super adesivados ao corpo e coloridos com desenhos geométricos entre as pernas e o bumbum.

Resolveu sua dúvida: vou de Avatar!

Achou seu “legging”, reminiscência de um tempo no qual se dedicava a correr, certa de estar abafando, no supermercado, com seu “collant” roxo e laranja, depois do treino.

Ela não desapontará o neto inventivo que percebeu a virada do tempo – “o gap” como se diz – entre ele, sua avó e o seu lugar no novo século.

Mundo VIII O Bléem ♪ do Sino

Tenho um amigo com o qual comento os momentos da alma. Aqueles que nos afligem. Aqueles acima de nós, como, hoje, o sentimento de impotência.

Quando ele me perguntou como eu ia, disse-lhe que perdida, como todos, neste não tão particular momento, visto que guerras e o volume de tensões insanas não é novidade para o mundo.

No dia a dia, há graus de tensões. Algumas nos afetam mais, outras menos. Todas trilham mudanças de paradigmas, por vezes imperceptíveis, mas aquele que sente o preconceito e sua violência na pele sabe ser o julgamento, subjacente à ignorância, o mal que assola o mundo que hoje se configura.

Mais ou menos cientes dos fatos, a impotência nunca deixa de afetar os seres humanos de boa vontade: os neutros, aqueles que não querem tomar partidos para não intensificar a polarização, nem aguçar os sentimentos acirrados para a briga.

Aqui atenção: em hipótese alguma, os neutros podem ser acusados de alienados! Os neutros sofrem de impotência, um sentimento doloroso sobre a incapacidade humana de atuar junto aos fatos, mas que talvez sirva para não “colocar mais lenha na fogueira”!

Ao ouvir tais ponderações, meu amigo aconselhou-me a encontrar, no rés do chão da alma, uma sala. Uma sala onde deveria esperar o mundo recuperar seu fôlego. Encontrar o silêncio fechado, sem interferências, buscando renovar a sua fé e aceitar sua maneira de se expressar que nada mais é – ao meu ver, é claro – do que calar-se.

Nada está ao meu alcance para transformar ódios que se traduzem em guerras, violência co-existente com a desenfreada necessidade de matar tudo aquilo de que não gosto, e por fim, o poder e o domínio sobre os fracos.

Não fomos premiados com a vontade, ou condição, de ouvir todas as vozes num só toque –Bléeem ♪ do sino que quer nos dizer: “deixem de se odiar uns aos outros!”

Quem sabe um dia o mundo escute o Bléeem ♪ do sino chamando para a sala da alma, assim poderemos ouvir, no silêncio, o chamado do espírito e meditar sobre o que afinal estamos fazendo aqui?

Será que nos falta clamar por Deus?

Mundo IX A Era da Consciência

Neste texto Mundo IX, tento reportar indagações sobre como neutralizar o meu juízo de valores e constatar fatos do que vivenciei em uma recente viagem. (Claro que o fato pode ser controverso mas não deixa de ser o real acontecendo!)

Conclui que o mundo não comporta outro bilhão de pessoas. O território no qual pessoas vivem e transitam, passou-me uma desagradável sensação de já estar exíguo.

O exemplo que tenho para justificar tal afirmação é o crescimento exponencial de pessoas nos aeroportos pelos quais passei.

Não se discute aqui o direito das pessoas se deslocarem de um lugar para o outro. Sou testemunha – crítica, é verdade – pois sou, também, mais uma viajante que precisa ficar horas em filas para qualquer procedimento obrigatório e sucumbir – em silêncio – a profissionais impacientes e nervosos devido ao acúmulo de serviço a ser prestado. Os transtornos pessoais, sem que o viajante seja o culpado, são inúmeros.

Creio ter chegado à conclusão de que o planeta Terra não comporta mais pessoas ao observar, entre o tsunami de gente em toda parte, muitas cabeças brancas movimentando-se em cadeiras de roda. Explico:

A propaganda midiática insufla as pessoas de idade a aproveitar a vida, custe o que custar, mesmo não estando mais em condições físicas para isso. Sou uma delas! 

Já viverei mais que meus antepassados e me outorgo o direito de viver a vida, apesar de não mais conseguir andar mundo afora, suportando os inconvenientes do excesso de gente no mundo.

Assim sendo, conclui que estou melhor em minha casa e nem por isso estou velha. Estado de velha está na cabeça onde reside a consciência de que as pernas e as juntas não acompanham mais todos os desejos e objetivos.

Minha ocupação hoje é refletir se vivi a vida ou não!

Além da teoria do excesso de gente, também cheguei à conclusão que a inserção social da etnia, da religião e da nacionalidade, não nasceu apenas porque o preconceito em relação às diferenças de toda ordem viceja no coração do ser humano. Acho que, além de haver pouco espaço para todos, a etnia indo-europeia, a branca, encontra-se hoje em minoria e / ou em vias de extinção dando lugar para os pretos, indianos, orientais e demais etnias desrespeitadas, desconsideradas por conta da soberba branca – por tantas razões históricas – em seus credos e costumes.

Os brancos perdem sua hegemonia e os secularmente marginalizados ganham, enfim, voz!

Cheguei a mais esta teoria sentada em um banco duro, esperando meu voo que atrasou seis horas.

Lá mesmo conclui que podemos estar adentrando na Era da Consciência – o IX Mundo!

Mundo X 0,06 Segundos

Continuo colecionando notícias sem muita relevância num mundo a cada dia mais desorientado, sem limites e pontos de referência claros.

Creio que a maior parte dos oito bilhões de habitantes do planeta Terra desconhece o braço da ciência que estuda a herpetologia, ou seja o estudo dos anfíbios em geral.

Assim sendo chamou a atenção o título e o subtítulo de uma matéria de Roberta Jansen:

Brasil registra o primeiro “canto da cobra” da América Latina

e o subtítulo:

Pesquisadores do Inpa – Instituto de Pesquisas da Amazônia – fizeram o registro, por acaso, em vídeo.

O ”grito” emitido pela serpente tem 0,06 segundos. A cobra que emitiu o “canto” é conhecida como papa-lesma ou dormideira e seu nome científico é Dipsas catesbyi.

Tenho o mais respeitoso sentimento pela evolução da ciência e admiração por seus pesquisadores, mas não é de anfíbios que se trata esta crônica e sim da relativa desimportância desta informação na prática do nosso dia a dia.

Contudo, estando, neste momento, a atenção do mundo voltada para as agressões mortíferas de uns contra os outros, senti urgência em pensar nas vidas dissipadas e tentei expressar-me numa espécie de Réquiem – um canto em coro, religioso, em memória dos mortos.

Liguei a pesquisa do Instituto da Amazônia às milhares de mortes anunciadas.

Assim canto:
Seduzida pela cobra,
Deixo de ouvir,
seu sibilo de 0,06 segundos.
Deixo de ouvir,
seu surdo silvo universal.
Deixo,
a clareza do Mal proliferar na alma do Homem.
A sombra do Bem se calar.
Não ouço sua sibilação de amor à vida.

Mundo XI em 3D

Desconcertada, este meu décimo texto sobre Mundos destaca mais uma notícia irrelevante num mundo em chamas.

Empresa cria salmão vegano em impressora 3D.

A startup de tecnologia alimentar Revo Foods, com sede na Áustria, lançou um produto “inspirado” – atenção, as aspas são de minha autoria – no salmão (sic).”

A este “produto”, – portanto que nunca nadou em um rio de águas correntes – batizou-se de The Filet que consiste em mucoproteínas, derivada de fungos filamentosos (a mesma que é responsável pelos bolores) e nesse processo, a base proteica promyc foi projetada especificamente para fins de impressão 3D.

Nos informa ainda a Revo Foods:

A mucoproteína usada tem a textura natural “semelhante” à carne (as aspas são minhas, pois o salmão deixou de ser um peixe!).

Entenda-se: esta massa de carne alaranjada é para veganos e só “parece” ser salmão. Para certificar-se de que este salmão é “de verdade” e assim duplamente enganar o consumidor com a ilusão de que está comprando salmão pescado em águas correntes frias, a Revo Foods tem uma impressora específica que torna o produto duplamente – tal qual as notícias enganosas na mídia – fake de verdade: ele desenha os veios de gordura brancos, principal característica do salmão pescado no rio, aquele que nasceu peixe de verdade!

O Cérebro engana a consciência?

Inicio uma peregrinação diária em busca de fundamentos para notícias que me parecem irrelevantes, mas nem por isso deixam de ser desconcertantemente verdadeiras num mundo em busca de si mesmo, como esta do salmão.

Um artigo de Fernando Reinach (recortei trechos e frases) menciona um estudo que está sendo realizado sobre o efeito do cérebro em nossa consciência.

Diz o seu texto:

“Uma das funções mais importantes de nosso cérebro é apresentar para nossa consciência imagens, sons e cheiros que refletem o que está acontecendo em nossa volta, no mundo exterior. Para tanto recebe as informações vindas dos sentidos (olhos, ouvidos, etc…) e com elas constrói uma representação do mundo exterior. É essa representação que chega à nossa consciência. Quando essa representação é falha, por exemplo numa ilusão de óptica, ficamos confusos.”

“As alucinações ocorrem quando nosso cérebro produz e apresenta à consciência representações do mundo exterior que não existem de fato”.

“Faz anos que os cientistas tentam entender como nesses episódios alucinatórios o cérebro consegue enganar a consciência”.

Busco observar se minha consciência das “coisas” do mundo está sendo afetada pela realidade ou se estou a caminho de me tornar mais uma paranóica. Por vezes, me pego falando sozinha, em voz alta, pois sei que uma opinião está fadada a cair no balaio esgarçado de um mundo cindido em dois, sem saída para uma terceira via.

Porém, certo é que não quero comer gato por lebre em 3D!

Mundo XII o Provisório

Termino esta série de mundos e seus significados. O tema é inesgotável, mas, face a tantos ruídos desconcertantes em nosso entorno, confesso que cansei de pensar, avaliar e sobretudo discutir com um universo que não quer ouvir prognósticos bastante horripilantes. Acredito que muitos dos que lerão este texto no bettinalenci.com.br concordarão comigo.

Um pai de família, sua cabeça inteira branca, proferiu uma frase que eu rapidamente anotei:

“Um provisório bem feito é uma m…. de uma solução definitiva”!

E não é que é verdade?

Vamos ao provisório bem feito e deixemos de expectativas para uma solução definitiva, que, acredito, jamais será a que esperamos.

Falando em solução definitiva: hoje caiu uma árvore imensa em cima do meu terraço.

Por anos cresceu desmesurada. Havia pouco espaço para suas raízes se alimentarem devido à prisão de cimento em que se encontrava. Os vizinhos, em roda, curiosos, raivosos, conformados, comentavam que ela estava lá há uns 60 anos. Ligaram durante muito tempo para o 156 – defesa civil – pedindo a poda da Tipuana. Não foram atendidos. Hoje chegou a solução definitiva.: uma m…, pois ficamos sem sua vida e benfazeja sombra para cachorros e automóveis.

Necessário dizer, que a defesa civil chegou na hora. Seguida da prefeitura para a poda e por fim, – a mais demorada – a ENEL. Em menos de 12 horas, a árvore e seus frondosos galhos jaziam esparramos pela rua e calçadas (é hora de pararmos de reclamar de tudo que acontece em relação aos serviços públicos).

Minha tristeza por ela é infinita.

É a mesma tristeza que se sente quando alguém se ausenta de nossa vida!

Escrevo à luz de vela. Acabei de voltar da minha inspeção sobre o tamanho do estrago. Santos trabalhadores avisaram para não me aproximar dos galhos caídos, pois ainda estavam eletrificados. Com medo de morrer carbonizada, refugiei-me do outro lado da casa e escrevi:

“Por que não estou mais conseguindo escrever textos poéticos, textos urdidos na alma?” Qual a razão desses doze textos de minha angústia sobre o mundo? Um mundo despoetizado, assustado, agressivo, impaciente, ameaçador?

“Que relação esta pergunta tem com o fato desta árvore amada tombar em meu terraço?

Desponta a resposta:

Porque não se deu atenção ao provisório bem feito!

Acredito em soluções provisórias porque permitem continuar a busca do perfeito inexistente. Mas a solução provisória deveria se concretizar, sair do achismo e do papel com a ação, a vontade e o bom senso da maioria e … sobretudo dos poderes constituídos.

Estamos afetados pelo medo não declarado que corre em nossas veias. Lembremos que somos, metaforicamente falando – um só Ser Humano configurado em bilhões de habitantes do Planeta Terra! Não se trata de uma vingança personalizada do Universo.

Enfim… são 3 horas da manhã, o ruído da poda me impede de dormir, mas sei que amanhã terei a geladeira funcionando e os alimentos não se deteriorarão.

Finalizando: a árvore caiu. Uma m….! Mas deixou o provisório: não há mais árvores para cair no meu quintal, apesar da falta louca que já estou sentindo dela!

Conformar-se com o provisório ajuda!

Conformo-me, no momento, com a ausência de sentimentos poéticos. É provisório!

Essas crônicas foram originalmente publicadas no site de Bettina Lenci: www.bettinalenci.com.br

2 comentários

  1. Bettina, estou adorando.
    Leitora do “Estadão” como você, lembrei-me sorrindo, ou nem tanto, dessas matérias. Sua leitura crítica é demais.
    A-do-rei!
    abs

  2. Bettina, seus mundos ou sua crônicas desimportantes são demais de ousadas! Me lembrou o filme Pobres Criaturas, um diretor extarordinário que tem a coragem de experimentar novas formas de representação. Você é uma observadora arguta de detalhes que passam despercebidos, mas que são da maior importância, pois a vida é feita disso, retalhos…Gostei demais!

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