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Os menos válidos

 

As calçadas começam a ter uma importância extrema; têm que ser lisas, com rampas suaves, acesso aos faróis e cruzamentos. Ela navega agora à altura de um metro, do chão aos olhos. Para quem estava habituada a contemplar o mundo a partir de 1,72, grande diferença.

Naquele país chamam as pessoas que se locomovem assim de “menos válidas”. Uma nova categoria, a que deveria se acostumar.

Acontece que as calçadas não são o que deveriam ser para os menos válidos. As de lajotas quadradinhas, as de pedras, as riscadas em ziguezagues artísticos, as com grama plantada entre os espaços, ah! as de pedras redondas, as de seixos, as de pedrisco com argamassa, todas essas funcionam como um liquidificador onde os ossos da coluna dos menos válidos são triturados,
um a um.

vaga para portadores de necessidades especiais, foto: iStock

Sentada em um carrinho elétrico que a leva onde tem desejo e possibilidade, resolve explorar a cidade. Uma vez, na travessia de uma avenida movimentada, a bateria apagou. No meio da faixa zebrada de pedestres.
De onde vem, a condição de cadeirante, termo politicamente correto, ou aleijado, mais coloquial, é um pouco assustadora. Imaginou que talvez sofresse assédio por atrapalhar o trânsito, mas isso não ocorreu, não houve buzinaço nem xingamento. Ficou grata.

Da altura de uma criança de um metro, o mundo é interessante. Em linha reta, vê-se um adulto que se aproxima da cintura para baixo. Quanto mais perto, mais necessário é dobrar a cabeça para trás, caso haja interesse em ver o rosto da pessoa, manobra dolorida no caso dela, pois esse movimento encontra-se travado justamente na altura em que a cabeça se inclina.

Crianças conseguem olhar, virar para todos os lados, pular, desviar, rodopiar, ignorar;imagina que a criançada não esteja muito interessada no rosto do adulto que se aproxima, ainda mais se for desconhecido.

Mas ela é curiosa, não quer perder nada. O que a trava no corpo, destrava seu interesse, a não ser quando as dores a desanimam. O inverno é carrasco. Quando os ossos recebem uma onda fria, a musculatura se contrai, ferro frio entrando na carne. Só deseja deitar no calor.

O carrinho de 4 rodas com motor, a scooter, possibilita mais autonomia, mas às vezes tem que usar cadeira de rodas, por falta de espaço nos lugares.

Experiência humilhante. Ela fica na dependência de quem a empurre, pois nem todas as cadeira disponíveis têm a roda adicional, uma espécie de anel que permite que o cadeirante menos válido manobre a seu bel prazer.

À mercê da caridade ou do sadismo do outro. Ou esquecida em algum canto, ou levada em alta velocidade, principalmente nos aeroportos por atendentes especializados neste trabalho, todos estressados. Ficou sabendo que, às vezes, surgem vários cadeirantes em aviões que descem ao mesmo tempo e o trabalho desdobra-se.

Viveu uma experiência emocionante: o atendente, em alta velocidade, levava duas menos válidas ao mesmo tempo, outra senhora e ela, o coração na boca. Foi sossegando, sentindo-se segura com a competência do piloto, não sem antes imaginar que ele poderia derrubá-las ou trombar com algum passageiro distraído. Sentia vento no rosto e nos cabelos, entregou-se. Começou a rir.

A experiência de dependente, de menos válida, de não ser mais autônoma – como costumava ser, abriu espaço dentro dela. Espaço para pensar o que tinha acontecido com seu próprio corpo, como tinha construído esta condição.

A experiência de desvalida a colocou outro lugar. Vai conseguir aceitar ajuda? Abrir mão da vaidade? Vai conseguir?

Outro dia teve que ir a um velório. O andador, outra geringonça que sustenta o corpo, estava no porta-malas do carro. Não levou, ficou com vergonha. Cerimônia longa, o padre não parava de falar, ninguém prestava atenção. Em pé, a coluna se retorcia, pedindo apoio. Não tinha lugar para sentar. Colou-se na parede, toda torta, de lá não saiu até o final.

A experiência de desvalida a colocou outro lugar. Vai conseguir aceitar ajuda? Abrir mão da vaidade? Vai conseguir?

 

Sylvia Loeb, psicanalista, escritoraSylvia Loeb é psicanalista e escritora. Visite seu site em sylvialoeb.wordpress.com , acesse sua página no Facebook: @SylviaLoeb ou escreva para o email [email protected]

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