Clube dos Escritores 50 mais Carlos Schlesinger Nossos herois - Imagem gerada por AI

Os heróis eram outros,
por Carlos Schlesinger

O nome era engraçado para crianças e adultos. Gagarin. Parecia brincadeira. E, naqueles dias, só se falava nele. Gagarin, um astronauta russo, de olhos rasgados, sorria após ser resgatado do primeiro voo de um ser humano no espaço. Os americanos ficaram furiosos e partiram para a competição. Abria-se nova página na Guerra Fria entre as superpotências, a corrida espacial. A guerra era acirrada e novos nomes surgiam e se incorporavam ao conhecimento popular, assim como as façanhas que cresciam a cada dia.

Assim, John Glenn vingou os americanos impactados pelo voo de Gagarin, ao ser o primeiro a orbitar a Terra por três vezes, já que o voo do russo se limitara a fazer uma única volta em torno do planeta. Foi neste voo que o cosmonauta, fascinado, informou ao mundo que a Terra era azul.

Sucediam-se os feitos e a corrida dos pontos. Allan Shepard, John C Glenn, Titov, Valentina Tereshkova, esses eram os nomes que todos conheciam na ponta da língua.

E, naturalmente, o que os meninos queriam era o fabuloso capacete de astronauta que a fábrica de brinquedos Estrela lançou, tornando-o o mais cobiçado objeto de desejo desde o advento da bengalinha do Bat Masterson, que o sabonete Cinta Azul ofertava a quem achasse uma cápsula dentro do sabonete.

Dezenas de sabonetes foram despedaçados em cada casa, mal desembrulhados no afã de encontrar o objeto que se transformava depois na bengalinha desenxabida. E, pelo Brasil, milhares ou dezenas de milhares tinham o mesmo triste fim, sem que sequer lhes fosse haurido o aroma, transformados em lascas e raspas.

Mas o capacete… esse era elegante, grande, branco, feito da então chamada matéria plástica, com uma viseira de plástico flexível, verde-claro, como se fosse um vidro ray-ban através do qual o astronauta mirim observaria o universo em plena revelação.

Porém, aquele menino, como se dizia em Pernambuco, aquele menino tinha uma mãe pernambucana.

E aquele menino, pedia pouco, muito pouco, já que os livros lhe bastavam, com suas viagens especiais e espaciais ali contidas, de todos os tamanhos, matizes, destinos e linguagens.

Mas o capacete da Estrela, ele desejou com todas as forças de seus oito ou nove anos. Ardentemente. Já se via andando na rua com suas sandálias Franciscanas, um conjunto estampado, de calção e camisa iguais, e com a cabeça revestida do fabuloso capacete, cuja aba só levantaria para observar novos planetas que ele, claro, descobriria.

Fez ver seu desejo por dias, semanas, talvez, até que um dia, sobre sua cama, encontrou o pacote, envolto em papel de presente, com a indisfarçável forma arredondada a denunciar seu conteúdo.

Empertigou-se como cabia a um Glenn, um Titov, um Grisson, e despedaçou, como se fosse um sabonete Cinta Azul, o papel do embrulho.

Desnudado, ali estava em couro cru, com o cheiro típico, com uma estrela na fronte, um lindo e pequeno chapéu que sua mãe mandara trazer do Recife, convicta de que mais valia formar um pequeno cangaceiro no Rio de Janeiro, do que um improvável aspirante a astronauta da Flórida.

O tempo lhe daria razão.

6 comentários

  1. Muito bonito!
    No final sempre damos razão às maes pernambucanas…mas
    imagino a frustação do menino ao usar o chapéu do Lampiao
    na festa de aniversário do amigo de escola!!!
    Boa história!

  2. Carlos Schlesinger
    A frustração do menino de oito anos transformou-se em combustível para belas viagens literárias como essa crônica. Viagens que você pilota muito bem, sem necessidade do capacete, mas, suspeito, com a ajuda do chapéu de couro.
    Abraço

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