Passei por ele voltando para casa. Um belo homem devia ser, por trás da camada acinzentada que lhe cobria o corpo. Muito negro, alto, rijo, os cabelos desgrenhados, longos. Vestia feito manto um cobertor desses também acinzentados, que um dia foram forros de carpete. Havaiana em um pé, descalço o outro. Mas não fazia tanto frio. Manhã de domingo, nenhuma nuvem no céu nesses primeiros dias de outono. Esperava do lado de fora da padaria pelo pão na chapa e café com leite que o dono manda o funcionário oferecer, ó-aqui, mas agora vai circular, amigão! OK, OK, pode, pode, amanhã passa de novo que tem mais. Deus te abençoe, irmão! ã-hã, toma teu rumo, rapaz! Eu passava nesse instante. Recebi em cheio o toma teu rumo, rapaz! Hein? Ele me saudou, levantando o copo de plástico, como para um brinde. Um lindo dia para ir ao parque, tem razão, irmã, lindo dia para passear no parque, está vindo de lá, não é? Lindo dia! Virei, com o sorriso engatilhado nas nossas humanidades comuns. E eu estava mesmo vindo de um parque! Desgraçada, começou a gritar o homem, deslocando pesadamente cobertor, copo e pão na minha direção. Vai arder no inferno, sua maldita, mil vezes velha maldita! Ninguém mais na rua, maldita era eu. Recolhi o olhar de volta para o chão, envergonhada com o ódio do homem, os passos criando rápidas fronteiras. Domingo de manhã. E nós dois, sós, na rua vazia, prisioneiros de nossas vozes.
Para Esther Soares, Sylvia Loeb, Bettina Lenci, donas da ideia
Crédito da foto
Diógenes Araújo, no Flickr
Navegue pela série do Clube dos Escritores, Os Donos da Rua!
A dona da rua, por Sylvia Loeb
Lábios imensos, carnudos, dobravam-se para fora da boca feito pétalas maduras de flor vermelha desabrochada. Caminhava com passadas largas, pra lá e pra cá, ao longo de uns 20 metros da rua. Sua rua. Saionas largas sobrepostas, os cabelos escondidos por turbante colorido, falava animadamente com alguém invisível. A cabeça altiva, o peito pra frente, a conversa animada, ar de triunfo. Continue lendo aqui!
Leopoldo, por Bettina Lenci
Passo diariamente ao lado de uma loja com marquise, cujo portão de ferro está baixado. Em frente a essa porta, um catre feito de madeira de construção segue o desenho de uma cadeira de praia. Uma ”chaise-longue” de ripas e encosto inclinado sob um guarda-sol branco conhecido por “ombrelone”. (Por que num país com quilômetros de praia usamos nomes estrangeiros para designar a mobília de verão?). Continue lendo aqui!
Autora escapa das pieguices contemporâneas que servem para apaziguar consciências ou deixá-las em eterna espera de acordar. Fecho magistral “E nós dois, sós, na rua vazia, prisioneiros de nossas vozes”.
Obrigada pelo magistral, Liliana, vindo de você, fiquei orgulhosa. Difícil a questão da pieguice. Costumo chorar até com os sabiás do parque, mas pieguice às vezes parece mesmo uma indignidade com a estatura humana do outro. Sobram as humanidades comuns…seria talvez um outro jeito de falar de compaixão?
procurei “piegas”: Que contém pieguice ou excesso de sentimentalismo; Que ou quem é muito sensível ou assustadiço; Que ou quem se prende ou se preocupa com pequenas coisas ou com coisas consideradas sem importância; Que ou quem se lamenta demasiado.
Excesso de sentimentalismo não sei o que é: sentimentalismo já é deturpação de sentimento? Chorar com cantos de sabiás, seria preocupar-se com pequenas coisas? Quando o lamento é demasiado? Em suma: Compaixão, sentimento, emoção, dignidade, na alegria e na dor. Rir e chorar. “Pieguice” poderia ser reduzir tudo isso a um consumo de autoenaltecimento. Mas, quem somos para julgar? E qual é meu veredicto da pieguice de quem seja?
“Recolhi o olhar de volta para o chão, envergonhada com o ódio do homem, os passos criando rápidas fronteiras”…
Passos criando fronteiras, wow!
Sergio querido, passos que criam fronteiras…foi tão aguda a sensação que quase consigo ‘enxergar’! Vc disse uma vez, de manhã antes de quase acordar, quando as coisas tem ainda uma concretude de sonho!
Gosto de pensar que as palavras vão e voltam e recobram seus mistérios. Veja essa história de pieguice. Uma das poucas certezas que tenho é do valor das nossas pequenices, a gente vive no miúdo, tenho certeza (quer dizer, quase!). Por outro lado, talvez pieguices deixem as coisas ralas feito sopa mal feita, sopa que não entendeu nada do mistério de se deixar ficar ali no fogo, combinando-se, impregnando-se, bebendo do outro sua humanidade. Mas como vc, qual é meu veredicto da pieguice de quem quer que seja? A coisa toda exige humildade….
Conheço este homem. Elegante, altivo em suas roupas andrajosas, os passos de um verdadeiro vencedor em direção ao seu … o quê? À sua dignidade?
Lembrei do filme do Buñuel, “Viridiana”, em que uma linda e jovem moça recolhe os mendigos da rua para um banquete em sua casa maravilhosa. A cena final, quem viu o filme há de lembrar, é a cena do Banquete de Cristo.
“Recolhi os olhar para o chão…os passos criando rápidas fronteiras”, que tentamos, à la Veridiana, ultrapassar.
Nunca tinha pensado sobre essas “humanidades comuns”. Sim, de fato, essas humanidades comuns são um sentimento de compaixão. A compaixão nos transporta um pouco para a alma do outro. Nos faz sentir e dividir um pouco a dor do outro. Parabéns pelo texto.
Maravilhoso esse texto. Lembro de já ter passado por situação assim, por isso, fica mais valiosa ainda essa visão que faz um tipo de jogo entre dignidade e vergonha, compaixão e medo, solidariedade e ódio, genial!!!