Ela parece dormir, mas os dedos das mãos se movimentam de forma ritmada. Talvez esteja no baile do clube. Quem sabe ouvindo: “os sonhos mais lindos sonhei, de quimeras mil um castelo ergui”. Em rodopios com seu vestido florido, como na foto amarelada sempre junto de sua cama – talvez, como saber?
Ao perceber minha presença, ela se agita, tenta falar algo, mas as palavras não se completam. Não pronuncia meu nome, nem o de ninguém. Será que nossa relação permanece em algum espaço de sua memória? Gostaria de acreditar nisso.
A ciência procura respostas à seguinte questão: até quando é possível uma pessoa ter a percepção da realidade? Enquanto pesquisadores se dedicam em trazer à luz questões fundamentais da vida humana, eu mergulho em cenário afetivo, e diante de mim surge um cérebro incandescente; brasas – para se tornarem chamas, bastaria um sopro de ternura?
Observo que nela mudanças ocorrem de maneira rápida. Há pouco tempo, apoiada em meu braço, caminhávamos até o jardim da casa. Por lá, canteiros coloridos: rosas, azaleias; de repente, aparecia algum beija-flor se nutrindo no hibisco – olhe, olhe, que lindo! Breve encantamento, logo sumia sem deixar rastros. Da observação do céu, as nuvens eram o que mais apreciava; em seus formatos, ela compunha cenários inusitados – lá vão baleias atrás de pássaros, ali, bem ali, não parece? Por instantes, a alegria se sobrepunha à amargura de sua solidão. Na antiga casa paterna, viviam apenas ela e alguns gatos.
Agora, no atual estágio de sua doença, não consigo segurá-la, seu corpo está enrijecido e o olhar vaga por algo indecifrável.
Quando eu era criança, ela costumava deitar-se ao meu lado na cama e contar estórias, algumas conhecidas, outras inventadas. Era difícil chegar ao final – eu dormia antes da metade; mas se ela se movesse, eu acordava e pedia para continuar.
Ela gostava de ler, trazia livros da biblioteca pública ou pedia emprestado de alguém. Em casa tinha muitos afazeres, mas quando possível, estava com um livro. A mãe tinha certa estranheza com aquilo: “Que tanto lê esta menina?”. O pai achava tanta leitura perda de tempo: “Ler o que os outros escrevem – que bobagem!”. Romances, dramas, novelas só serviam para criar ilusão nas pessoas, dizia. Seu foco de interesse era outro, o noticiário: os rumos da política em geral; tinha receio de conflitos armados – “uma pequena fagulha pode dar início a outra guerra”.
De certa forma, nossos papéis se inverteram, a contadora de estórias sou eu. Hoje, trouxe um conto para ler em voz alta. É sobre uma mulher que vive só. Ao comparecer à missa, se depara com um cachorro na escadaria da igreja; após abanar o rabo, começa a segui-la. De início, fica assustada, mas depois acaba por levá-lo para casa. Dá-lhe um nome: Vagarinho.
Ela também tinha um cachorro, encontrado com fome e machucado na rua; tratou dele, dava-lhe comida, cuidava de suas feridas; briguento, se atracava com outros cachorros da vizinhança, como era difícil apartar essas brigas! Dentro de casa não podia entrar, a mãe proibia. Então, ficavam juntos na varanda, ela sempre com algum livro nas mãos, e em seus pés, a carícia de pelos macios.
Enquanto eu conto a estória de Vagarinho, minha irmã permanece sentada em silêncio. Ao final da leitura, apoia as mãos nos braços da cadeira, começa a mover o tronco, incessantemente, como um pêndulo, para frente e para trás. Parece dizer algo assim:
— Agora, vamos! Vamos!
Mente, lembranças, que com certeza estão no lugar especial, que é o coração! Nos momentos juntas, hoje com breves despertar, é a ligação que sempre terão. Laços na vida que temos por um tempo… além desta vida, existe o eterno. Sorrisos, histórias, brincadeiras de uma infância que será o reencontro das irmãs que se amam com um abraço cheio de carinho. Lourdes, obrigada por escrever com tanta emoção e carinho.
Que bom poder traduzir em palavras a dor, a perda, as saudades, as lembranças…
Que bom poder reconstruir um cenário onde havia cuidado, carinho e diligência .
Que bom poder retribuir hoje esse amor, sem contar com um retorno que seria bem vindo. Que bom aprender e crescer com tudo isso. Texto tocante, Lourdes. Lindo!
Que texto belo e triste, Lourdes. Dias atrás, após uma meditação em grupo, uma amiga falou da tia, dizia que o lugar que ela estava ninguém poderia alcançar, mas nem por isso era um lugar ruim para a tia, apenas inacessível à sobrinha. E quem sabe, ela estava lá, naquele lugar que nos, pela meditação, tentávamos tocar. Há tanto mistério que não sabemos rondando essa passagem da vida. Que bom que você leu os livros que queria, os frutos todos nós estamos saboreando 🫶🏼
Que doce são as lembranças, q lindo seu texto!
Lourdes, você nos leva, com arte e leveza, para o insondável mundo dos que perderam a capacidade de se comunicar. E contar histórias, como a do Vagarinho, talvez seja a maneira mais humana de estabelecer algum contato. Quem sabe…
Lindo texto Lourdes.
Para onde será que vamos, quando esquecemos?
Lurdes, como vai?
Muito bonito e carinhoso o seu texto.
Vagarinho será uma das lembranças mais quentes desta senhora esquecida.
Sugestivo nome: devagarinho vamos esquecendo quem somos… mas…
As lembranças nao morrem e se morrem prefiro acreditar que nao! Seriam as únicas companhias que teremos quando esquecidos.
As guardadas são as que importam. Elas jazem em algum canto que nao cabe a nós perguntar aonde, nem para nós
mesmos nem para nossos entes queridos.
Nao dividimos as mesmas lembranças com eles e jamais saberemos quais foram as deles que guardaram para si!
As lembranças — as mais já consoladas-, seriam as únicas companhias que teremos quando esquecidos.
um texto de esperança, este seu!
Oi Lu. Tocante o texto sempre bem escrito. Penso q certas lembranças não se apagam. Estão recolhidas mas vivas.Parabens pelo texto
.