Era uma árvore de rua, comprimida pelo asfalto, sobrevivente. Não tinha dono, não pertencia a quintal nenhum. Seus frutos, raros e murchos , caíam sem alarde. O vento fazia sua poda, levando, de um golpe só, galhos pequenos e folhas secas e translúcidas. Visivelmente torta, pendia para o lado, resultado da fúria de um raio que fez dela alvo. Tronco grosso, repleto de rugas fundas, entrada franca de pragas, parecia frágil para sustentá-la. Raízes, arreganhadas, desenhavam relevos estrangeiros na calçada, feitos de marrom e musgo. Enrodilhadas, construíam ninhos rasteiros que serviam de morada a cães, tão sem dono quanto ela. Generosa, ainda fazia sombra, oferecendo refúgio fresco nas tardes de sol quente. Aos mais desavisados de sua condição precária, abrigava das chuvas fortes. Na primavera, suas sementes esparramavam-se entre os carros estacionados por perto. Naquele solo de metal e vidro, extinguia-se sua espécie.
Era um menino de rua, de pele escura e cabelo sujo. Olhos pretos e atentos de quem sabe os perigos da vida. Boca dura, moldada pelo destino de ter se criado só. Magro, comprido, quadris estreitos, quase sem carne. Pernas e braços tingidos por cicatrizes, marcas de abandono. Sem pai, sem mãe, sem futuro. Sem rumo. Na voz, a pouca modulação denunciava o deserto que lhe ressecava o peito. A garganta, travada há tempos, desde o dia em que descobriu que de nada lhe servia chorar. A rigidez do rosto compensada pela cintura cheia de jogo e esperteza de quem sabe se tornar invisível. O coração, habituado a viver em disparada, batia no compasso dos pés sempre em fuga. As mãos, com seus dedos longos, ágeis, lhe abasteciam do que conseguia do mundo.
Era um dia qualquer, a árvore e o menino ocupando a rua. Entardecia. O menino exausto pedia descanso. As pálpebras pesadas denunciavam o sono daquele ser só, sem pouso. Foi quando viu o ninho, feito de marrom e musgo, se desdobrando na calçada. Aquele corpo magro, de pele escura e cabelo sujo, enrolou-se sobre si mesmo, apequenando-se, para caber naquele colo inesperado e bem vindo.
A noite fez silêncio e acolheu a árvore e o menino.
REGINA AMARAL – “Entre o visto e a escrita, descanso na pausa. É nela que as palavras surgem e me espantam, enquanto contam, para mim, o que vi. Não à toa me tornei psicanalista.”
Lembro do Pequeno Principe dormindo sob um Jatobá ( nao lembro o nome) coberto com um fraque azul.
Gosto desta imagem captada do menino órfão embalado pela proteção de uma galhada de arvore e envolto com um cobertor de musgo. Marrom.
Apesar de ser uma realidade tao triste nossa, o texto a traz com carinho e amorosidade poética.
o mundo compreendeu
e o dia amanheceu
em paz!
🙂
O olhar capta, a escrita mostra o visto, o afeto mexe com a gente. Levantamos os olhos do texto, vemos o menino enrolado debaixo da árvore, o coração reage.
O texto tráz a memória traços de um mundo que necessecita de algo que possa dar cor e brilho ao nosso meio ambiente no contexto humano.
Arvore e menino, ambos abandonados a propria sorte…