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O viajar da língua,
por Eder Quintão

A língua, meus amigos, viaja e como! E em cada viagem ao longo dos tempos apreende, incorpora, inova-se, muda ao ponto de ficar irreconhecível para os que vieram ao mundo há não tanto tempo assim. Desde a invasão visigótica na península ibérica viajamos pelo português arcaico e chegamos ao Infante Dom Henrique, passando a Camões, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, José Saramago, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Lima Barreto, Clarice Lispector. Viajando ela dá voltas ao mundo, exporta palavras novas e incorpora outras – mais importa do que exporta – que os pedantes de tempos recentes rotulavam como galicismos, anglicismos, italianismos, espanholismos, mas nós, nossos netos e bisnetos conhecem plenamente como portuguesismos clássicos, de uso no dia-dia.

Alguém ousaria deletar da língua, de nosso feijão-com-arroz cotidiano, palavras como browser, cowboy, drag queen, football, home theater, link, mouse, net, performance, shopping, site, stress, e mais boate, buquê, camelô, carnê, chique, matinê, marrom, omelete, pivô, sabotagem, toalete, além de aficionado, cappuccino, espaguete, mezanino, panetone, pizza, salame, continuando com bolero, castanhola, galpão, granizo, guerrilha, intentona, só porque Camões não as conhecia? E de onde vem esse insólito “tchê” dos gaúchos? Se foi argentino…  Execramos, mas falamos….

Nem por isso seremos condescendentes. Os computadores traduzindo do inglês para português infectam nossa língua como vírus. O gerúndio odiado, contaminou nossas mentes. Outro dia ouvi a telefonista de minha empresa assim: “estarei marcando uma consulta com o Dr…” Perguntei se ela era solteira ou casada. Respondeu que estava noiva. Então indaguei se “estará se casando mês que vem” ou apenas “se casará mês que vem”, ao que respondeu “me casarei”. Seu gerúndio era algo que entrara pelas orelhas impregnando seu DNA de forma irreversível.

Outro dia tentei fazer meu neto futebolista entender o que diziam os jornais sobre futebol por volta de 1912. Foi mais ou menos assim: “O match de football entre Corinthians e Palestra Itália terminou empatado sem produção de goals. Convenhamos, a linha de forwards do Corinthians esbarrou na pujança dos backs e mid-fielders verdes e não foi por falta de valentia do center forward do squad corintiano que recebeu passes precisos e atacava com grande maestria. Houve, cremos que menos por imperícia e mais por desconhecimento das regras no novo sport, inúmeros fouls de parte a parte apontados pelo referee, além da falta de melhor entendimento da regra sobre off-side, até por falta de experiência dos referees e distrações dos lines men.  Houve no primeiro half do match um goal anulado do Palestra por foul sobre o back do Corinthians e muita emoção quando duas vezes a bola bateu em posts palestrinos. Alguns belos shoots de forwards do Palestra foram muito bem defendidos pelo goal keeper do Corinthians. Corner kicks ocorreram de ambas as partes sem sucesso em produzir goals. Todos participantes usavam football boots e balls importados”. Conclusão: meu neto não entendeu bem que jogo era esse com nomes tão estranhos. De minha parte, desisti de traduzi-los. 

Pedro Vaz de Caminha chegando ao Brasil em 1500 escreveu duas cartas ao rei Dom Manuel, o Venturoso. Uma delas tornou-se conhecida e publicada. Aqui apenas colocamos nela as palavras atuais, sublinhadas para melhor compreensão dos leitores de hoje, e omitindo as originais, daquele tempo antigo. A outra, desconhecida até recentemente, foi milagrosamente salva do incêndio do Museu Nacional, o mesmo fogo perene que consome Amazonas e Pantanal. Esta, Dom Manoel devolvera ao missivista por não entender inúmeros termos. E sabemos por que ele o fez: ele desconhecia palavras incorporadas à língua de Camões, mas já faladas pelos nativos à época do descobrimento.

Vejamos na carta conhecida as que Dom Manoel sublinharia à espera de tradução se fossem escritas pelos nativos de hoje: “Senhor: Posto que o almirante desta vossa esquadra, e assim os outros comandantes capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do descobrimento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer. Tome Vossa Alteza, porém, minha ignorância por boa vontade, e creia bem por certo que, para engalanar nem desfigurar, não porei aqui mais do que aquilo que vi e me pareceu. Da tripulação e navegações do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse cuidado. Portanto, Senhor, do que hei de falar começo e digo: A partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de março. Sábado, 14 do dito mês, entre as oito e nove horas, nos achamos entre as Canárias, mais perto da Grã-Canária, e ali andamos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro quilômetros”.

Seguem nela termos curiosíssimos como “sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas (das nativas, obviamente), as quais não eram fanadas (tradução: murchas); e as cabeleiras delas estavam bem rapadas (tradução raspadas) e feitas”. Omito o restante da carta pois nada tem de mais excitante do que quando menciona as vergonhas.

Impaciente Dom Manoel listou muitas outras que desconhecia da segunda carta (a salva das chamas): capim, procelarídeos (aves que chamavam “fura-buxos”), metros, botes, genitais, gorros, coldre, escavação, tampinha, tamanho, nuca, etc., etc. Pena El Rei não ter chegado a nossos dias para vê-las traduzidas em seu português arcaico. Seguramente, se a tivesse lido nada entenderia.

Se mergulharmos mais além no passado com línguas imutáveis talvez estivéssemos proseando em latim.  É verdade que ouviríamos “radio” (sem acento), mas não iríamos ao cinema, e sim ao movie theatrum, nem veríamos TV, mas televisifica, e trabalharíamos não com computador, mas com computatrum, nem jogaríamos futebol, mas morbi, andaríamos de currus, nunca de automóvel, e outros preferem viajar de planum, mas eu de avião.

A situação se agravaria se ainda falássemos aramaico, grego clássico, persa antigo, ou hebraico. Pelo menos a última ressuscitou com muito mais falantes do que nos séculos anteriores à era cristã. Arqueologia assim eficiente só mesmo obra dos filhos de Israel. Em nosso mundo até o conservadorismo do Vaticano abandonou o rito em latim pelo som da língua secular.

Mas, nem precisamos de nos remontar tão longe no passado. Há oitenta anos me alfabetizava na leitura de Monteiro Lobato, e seu Sitio do Pica Pau Amarelo. Quarenta anos depois esforcei-me para meus filhos repetirem a façanha. Perda de tempo. Desistiram tantas as palavras não mais usadas na língua corrente. Garanto-lhes são muitas, mas não concordo com os que o acusam de racista:  quem escreveu o comovente conto “Negrinha” nunca mereceria esta pecha. Urupês consagra-o como um dos pais de nossa língua, mesmo que a usada para crianças esteja obsoleta.

Tão simples escrever “iniciando”, mas meu maldito computador finge que escreve castiçamente com “inicializando”, numa tradução tosca de “initializing”. Sua marca é norte-americana, tudo em inglês, sem jamais aprender a lição de Sir Winston Churchill: “escreva frases curtas, usando palavras as mais curtas, e sempre as mais comuns”. Euclides da Cunha não pode conhecer Churchill, mas teria execrado se este tivesse lido seus “Sertões”, exigindo amparo de um dicionário específico. Salva-se Saramago com suas frases tão longas, sem pontuações, compensadas por vocabulário singelo e sarcasmo refinado.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A língua clama por novas experiências, por incorporação de sons inteligíveis, até neologismos (Shakespeare fez os dele e vive consagrado), embora com certo grau de respeitosa censura que nos distinga por educação refinada aliada à coragem para criar e aceitar a modernidade, os costumes adquiridos com o passar de gerações.

Temos 26 letras de nosso alfabeto, uma verdadeira escala sonora, talvez sobrepujada apenas pelo cirílico dos eslavos. Combinadas produziriam 2626 sons capazes de transmitir número fabuloso de mensagens geradas pelas engrenagens de nossos cérebros. São maiores suas possiblidades de criar sons inteligíveis e línguas humanas do que as obtidas utilizando os grãos de areia de todas as praias do planeta e estrelas das galáxias. É até surpreendente que não haja milhares de línguas na atualidade. Talvez seja porque nossas memórias um tanto curtas permitiram que incontáveis línguas caíssem no esquecimento ao longo do tempo. Os sons das palavras que emitimos hoje provavelmente não serão reconhecidos daqui a mil anos. Se não as tivéssemos adquirido no decorrer da evolução simplesmente nos limitaríamos a rosnar, latir, miar e ainda andando sobre quatro patas, no máximo, emitiríamos apenas sons de pássaros. Nada mais além de sonoros piu, piu!     

2 comentários

  1. Éder, você é um literato refinado com um pé no passado e outro no futuro. Uma enciclopédia ambulante. Eu também penso que devemos nos esforçar pra manter a língua viva e em constante transformação. Eu tenho a mania de ressuscitar velhas palavras esquecidas. Parabéns pelo texto!

    1. Sou um apaixonado por palavras, sofro desta doença desde moleque, quando matava aulas de matemática pra ficar na biblioteca lendo um dicionário de sinônimos da década de 50. Parabéns pelo texto, este nerd (ou sorumbático) aqui fica feliz.

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