O transgênero e a liberdade de ser, por Liliana Wahba

Falar sobre transgênero é difícil e complexo: não há uma verdade que sirva para todos. O tema da liberdade está em pauta tanto no indivíduo como na sociedade, na qual os preconceitos existem e atingem mais cruelmente as minorias; de modo que algumas conquistas que envolvem também a área da saúde são importantes.

Na atualidade, as cirurgias para mudar de sexo se tornaram uma realidade e mesmo aqueles que estranham e repudiam tal ato precisam conviver com ele. Quanto à homossexualidade, cada vez mais famílias assumem e aceitam que um dos membros seja homossexual. Se a revelação é mais frequente na adolescência ou no jovem adulto, surgem surpresas de desvendamento de pessoas mais velhas na faixa de 50 ou 60, como na série Grace e Frankie, na qual os maridos de ambas as personagens se declaram apaixonados um pelo outro após décadas casados com suas respectivas esposas; na série, as excelentes atrizes Jane Fonda e Lily Tomlin lidam com humor com a situação.

Um ator de novela recentemente declarou que não se via como homem nem como mulher, porque, ainda que se entendesse como homossexual, não queria se privar de ocasionalmente desejar uma mulher. Seria isso uma mostra da liberdade em não se definir por gênero e poder circular em ambos? É livre também o homem que pode desejar outro homem, ou desejar uma mulher, ou alternar, sem necessariamente alterar seu gênero. Aqui haveria a liberdade de desvencilhar-se dos preconceitos e imposições sobre o modo de direcionar o desejo. E deixo a pergunta em aberto: qual seria mais livre?

Mas, onde fica a liberdade nessas escolhas quando chegam ao radicalismo de mudar o sexo quando a pessoa não se identifica com ele? O que ocorre quando se abomina o próprio gênero que é percebido como imposto e a pessoa escolhe em sã consciência e liberdade mudá-lo?
Há casos, raros, de bissexualidade ou transexualidade genética que necessitam ser corrigidas, e mesmo quando tal anormalidade não se comprova há pessoas que relatam que desde pequenas se sabiam e sentiam de outro sexo. Mistério. E, no entanto, em alguns casos, o mistério não é tão misterioso. Uma transgênero mulher – cirúrgica e hormonalmente transformada – ativista da causa, em uma entrevista declarou: “odiava meu pai e o que ele representava, não queria ser homem como ele”. Ou seja, revela-se nesta fala a ausência da liberdade de ser um homem, mas diferente do pai.

Os especialistas e médicos atendem indivíduos que requerem a transformação e procuram sondar suas motivações. Recomendam dois anos de psicoterapia e há uma proposta de reduzir esse tempo, com a alegação de que a espera pode causar enorme sofrimento em quem deseja a cirurgia levando até mesmo ao suicídio. Fato. Outro fato menos comentado diz respeito aqueles que se suicidam após a cirurgia; e quanto à liberdade consciente, a psicanálise nos mostra que o domínio do inconsciente tolhe a liberdade de dentro para fora, assim como a coerção a tolhe de fora para dentro.
Não há respostas fáceis e imediatas, mas um alerta se faz necessário, particularmente quando se dá a opção dessa mudança irreversível em que o transgênero ganha uma identidade, um novo sexo, e até muitas vezes um quinhão de felicidade, mas se transforma em doente clínico para a vida toda, mutilado e dependente de alta carga hormonal e com importantes sequelas secundárias a serem constantemente monitoradas.

Para tantos meninos e meninas seria mais profilático investir na liberdade de ser e de desejar, ancorados no corpo que possuem e transformando as amarras e as dores que carregam, o que não deixa de ser uma condição do humano. Restariam aqueles cujos cromossomos são desviantes, ou corre-se o risco de transformar tais cirurgias em mais um excesso do consumo de plásticas para se sentir e se ver como o outro que não sou, porque não quero ser e porque a vida dói.
__________________________________________________________________________________________________

LILIANA LIVIANO WAHBA – Psicanalista junguiana. Profa Dra da PUC-SP. Diretora de Psicologia da Associação Ser em Cena – Teatro de Afásicos. Autora de Camille Claudel: Criação e Loucura.

 

 

Um comentário

  1. Prezada Eliana,

    é a primeira vez que leio seu texto sobre transgeneros.
    Sendo este um assunto que ultimamente vem ocupando o espaço dos meus pensamentos,
    reservei momento para lê-lo, hoje feriado de 7 de setembro.
    Confesso a minha confusão, e sobretudo, entendimento ( por falta de conhecimento…).
    Tenho pensado em limites , consciência, responsabilidade médica, remetendo-me a indagação
    religiosa sem duvida, mas principalmente sobre a liberdade e igualdade nao só de gêneros mas de classes, minorias, politicamente correto ou incorreto e por fim mas nao menos importante, TOLERÂNCIA.
    O mesmo ocorreu quando foi iniciado o movimento gay há tantos e tantos anos atrás e hoje iria ao casamento de um filho meu com seu companheiro. Tornou-se rotina e dejá vue! Sem necessidade de calcar o protesto e paradas gays.
    Sou aluna de Felipe Ponde e sinto-me bem no meu conservadorismo filosófico .
    Agradeço voce escrever tao bem e com tanta clareza sobre este assunto do momento e ir esclarecendo
    do que se trata a medida que vai evoluindo e trazendo exemplos de sucesso ou nao, ao longo do tempo.
    Quais as consequências?
    Um abraço companheira de escrita e do fifties. Benvinda.
    Bettina

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *