Só depois que a última árvore for derrubada, o último peixe for morto e o último rio envenenado, vocês irão perceber que dinheiro não se come. Pensamento indígena
Que menino! Lá estava a avó admirando os gestos do neto. Ao observar seu jeito, ela se referia a ele, por vezes, como desarvorado, quando, na verdade, queria dizer intrépido, mas essa palavra escapava de seu conhecimento. Chegara pequeno, embrulhado em trapos. Numa manhã ao acordar, encontrou-o em sua porta, nunca soube quem o trouxera. Sem indagações ou dúvidas, cuidou dele. Não é assim que tem de ser? — era seu modo de justificar seus cuidados com a criança quando surgia alguma pergunta de gente curiosa que passava por lá. Ele foi crescendo com aquilo de que se dispunha por ali; os dois vivendo isolados naquele canto da floresta.
Não tardou para ele começar a lhe trazer sementes que achava na mata. Umas para comer, outras para fazer colar de enfeite. Menino esperto, esse meu neto! — dizia ela, olhando as trouxinhas de ramas que ele trazia, tudo separado, comida em umas, contas em outras. Como ele sabia a quantidade certa de sementes para cada colar? Que sabido, quem diria?!
Já mais crescido, passava horas no terreiro rabiscando com ponta de graveto palavras no chão. Em noites luminosas, traçava símbolos, enquanto descortinava mistérios no céu. Melhor se aquietar, vem dormir, menino! — e a avó seguia para sua rede. Sabia que logo mais ele chegaria para embalar seu sono cansado. Tudo no roçado carecia de muita labuta. E o menino ajudava, nunca reclamava de nada, isso a avó agradecia, sempre lhe dava em troca algum agrado.
Com as pernas mais alongadas, começou a percorrer lonjuras, embrenhava-se floresta adentro. Parecia não ter medo de cobras, muito menos da pintada, onça da qual percebia sinais. Certo dia, a avó estranhou seu jeito. Ele sentou-se no tronco em frente à choupana e começou a entoar um canto numa língua que parecia inventada. Mas não era que a avó entendia?! Depois de certo tempo, ela começou a falar trocando as palavras: — Mbur, tatá, iti, kunu’mi…
Numa tarde, logo após uma revoada de araras, ele se aproximou do jirau onde a avó defumava caça, estava com seus braços cobertos por desenhos pretos. Danado, esse neto!, pensou ela admirada. Daí em diante, ele deu para pescar, chegava sempre com algum surubim, apapá ou tucunaré. Vez por outra, trazia de suas andanças paca ou cotia.
O corte de cabelo diferente aconteceu quando seu corpo atingira a altura do galho da tatajuba, que servia de cajado; os fios pretos e lisos cobriam sua testa, seguindo um traçado na forma de cuia no topo da cabeça.
— Que boniteza! — sussurrou a avó limpando os olhos, para ver se conseguia enxergar melhor.
Passado algum tempo, quando se ouviam na mata gritos dos guaribas, ele a amparou nos braços, levou-a até uma canoa, pegou os remos e seguiram rio acima. No trajeto alongado, árvores ribeirinhas espreitavam aquela mulher franzina e o moço de músculos poderosos, deslizando naquelas águas mansas. Chegaram à aldeia dos parakanãs.
— Vó, aqui nosso povo!
Ao ler este conto, ele me trouxe alegria e também uma certa nostalgia! A trajetória do indiozinho aqui narrada é de um ser cativante, responsável e de uma pureza incrível. Leitura muito agradável.
Delícia de passeio no mundo maravilhoso dos povos originários que tanto abafamos.
Que doçura de relato! Adentramos mato e floresta, acompanhando a estória de um menino que trazia gravada em seus genes toda a sabedoria dos povos indígenas, que foram , aos poucos se revelando e mostrando o caminho de volta ao lar, levando consigo a avó que o acolhera. Lindo!
Bela história, Lourdes. Uma volta às nossas verdadeiras almas.
Volta às origens, sem dor, Lourdes. Todo o que não foi dito está implícito em cada detalhe do menino que recupera suas insígnias. Maravilhoso.