Clube dos Escritores 50+ Liliana Wahba O rei não está nu Dark Souls Remastered Nintendo

O rei não está nu,
por Liliana Wahba

Conta a avó para a neta:


De como se instalou o reinado do terror

Há cem anos, no que se denominava regime democrático, escolhia-se presidente por voto no país outrora chamado Brombília. Foi a última eleição presidencial, já que se percebeu que havia muitos meios de forjar a democracia via roubos de urnas, manipulação de informações, desclassificação abjeta de adversários e outras iniquidades. Fato é que o presidente eleito prometeu bonança e punição a políticos que cometeram injustiças e espoliação de propriedade pública. Alguns o aclamaram, outros o viram como mal necessário. Diga-se que o governo anterior deixara passar oportunidades únicas de avanço cultural e econômico gerando grande insatisfação. Após a posse transformou-se em ditador.

De como o ditador se apoiou na Igreja e nas forças armadas

A fé era forte em um povo talentoso e trabalhador, mas possuidor de um empecilho para verdadeiramente progredir: esquecia o passado e desprezava o presente, apoiando-se em futuros promissores. Tais futuros deveriam ser ofertados por figuras carismáticas que o ofuscava com revelações. Surgiam, portanto, com frequência, personagens recitando refrãos mântricos de fácil assimilação como, por exemplo: “Eu vos guiarei para o bem estar”, “Confiai em D’s e em mim como seu transmissor”, “Conheço plenamente o que cada um necessita”, “Meu apoio é firme e seguro”, e proclamações semelhantes, todas em tom emocional intenso para surtir o efeito almejado.

Igrejas reforçavam a vinda de messias e aproveitavam para enriquecer, as alianças eram vantajosas para ambos os lados. Quanto às Forças Armadas da Nação, pareciam um tanto letárgicas ou, como se dizia na época, “em cima do muro”. Mas era aparência; se, de um lado, não desejavam um retorno ao regime militar ou ditadura explícita, não por moral, mas por ser demais trabalhoso para generais idosos, de outro, facilitavam estrepolias com sorrisos paternais.

De como a ditadura ia se instalando

E assim avançava sorrateira a ditadura, com desagrado do presidente que a achava branda demais. A cada passo tornava-se mais ousado. Entendia de tudo e obrigava seus ministros a seguirem suas orientações a partir de conhecimentos adquiridos em alguns sites piratas. Desastres ocorriam e, quando confrontado pelos poucos que ainda não calavam, respondia que era o destino, e o que pode o ser humano contra o destino? Já os gregos enunciaram, dizia, sem nunca ter lido um autor clássico. Assim, se havia interferido na construção de um Shopping Center com torres à la Gaudi – que tinha visto em um cartão postal – e esta ruíra por falta de fundações e estrutura matando centenas, respondia que o próximo empreendimento seria mais ousado. Discutia com médicos e obrigava a implementar procedimentos nos hospitais públicos a despeito deles; inúmeras mortes ocorriam em consequência e, nas raras entrevistas dadas, respondendo o que queria, assumia ar de sabedoria búdica dizendo descaradamente que muitos mais teriam morrido se ele não tivesse tomado tais e tais providências, contradizendo pesquisas científicas.

Instalou a desconfiança e o medo entre a população que ainda pensava, e lançava hinos e proclamações de avanço e luta contra inimigos aos seus seguidores embrutecidos contaminados pela paranoia. As arbitrariedades chegaram a beirar o ridículo. Com o intuito de fortalecer a indústria têxtil, lançou decreto de que homens deveriam somente utilizar cuecas listradas; estes eram revistados por blitz e, caso não portassem as cuecas devidas, levavam um choque elétrico, sim, naquele lugar. Ou inventou que as mulheres deviam usar chapéus sofisticados, o que as divertiu de início, mas, se esquecessem deles, ou o vento os levasse, eram imediatamente presas e se raspava sua cabeça mesmo quando tinham farta cabeleira; as carecas então deviam usar gorros.

De como ditador foi beneficiado com uma pandemia

Contudo, o alcance do poder ainda lhe era insuficiente; as sementes de rebeldia ameaçavam explodir. Até que eclodiu uma pandemia de agente agressivo e desconhecido pela ciência. À medida que laboratórios e sanitaristas do mundo todo se dedicavam a buscar uma cura, o presidente de Brombília regozijava, era o único no mundo todo que tinha a solução; simples, negando o fato no seu delírio megalomaníaco. A negação era acompanhada de falseamento de informação à população.

Sua índole mental preguiçosa pouco se incomodava com a contradição: se aquilo era inexistente, por que falsear informações? Afinal, tudo que se informa é subjetivo, pensava em raros instantes de pausa no ativismo, posto que agisse antes de pensar e estava bastante satisfeito com resultados, quaisquer que fossem desde que seguindo seus comandos. Somente o incomodavam contestações.

Equipes de sanitaristas alarmadas com o crescimento de afetados pela pandemia instavam-no a tomar medidas que havia funcionado em outros países, e ele se limitava a repudiá-las. Um dia acordou com uma iluminação examinando os gráficos que escondia do povo: se mais gente morresse, muito mais, haveria menos pessoas para governar e convencer ou simplesmente dominar. Eis uma rápida e conveniente solução, já que os militares eram preguiçosos para cumprir seu dever. O plano estava em vias de se cumprir a contento…

De como o menino Paulo de oito anos desmascarou o presidente-rei

Uma célula clandestina se reunia para achar uma saída, algo a fazer; não era possível deixar que a situação de calamidade avançasse de modo tão brutal, a violência da natureza acrescida pela violência do autoritarismo. Procuravam alianças entre políticos, Aeronáutica e Marinha, líderes religiosos, e as portas se fechavam, seja por conveniência de uns ou leniência de outros. Transmitiam comunicados, escritos, com perigo de serem descobertos, mas imediatamente outros comunicados apareciam para contradizer e confundir.

Em um desses encontros uma cientista social levou o filho Paulo, de oito anos, esperto e vivaz, conhecedor de computação e campeão de jogos eletrônicos. Estava entretido com um desses jogos e olhava distraidamente os vídeos que a mãe mostrava ao grupo. Aparições grandiosas do ditador com aparatos de efeitos especiais, bandeiras, luzes, égides, toda a parafernália midiática em ação com palavras de ordem.

Eis que Paulo falou, deixando os adultos atônitos: ele não tem sombra, é um personagem de RPG de Dark Souls, e retornou a seu jogo já desinteressado do espetáculo. A mãe e seus colegas o rodearam de imediato: – Paulo! O que está dizendo?!   Tem certeza?! O que fazer?! O garoto respondeu, um tanto entediado: – Desliguem o jogo.

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