Blog Clube dos Escritores 50+ Sylvia Loeb O menino e o pernilongo

O menino e o pernilongo,
por Sylvia Loeb

O menino pergunta:
minha mãe morreu?
Não.
O menino pergunta:
minha mãe está encantada?
Sim.

Tem veneno no ar, é proposital.
O pernilongo cai na minha mesa, fico olhando. Bate as asinhas, tenta voar, não
consegue, tenta novamente. Não consegue.
Movimenta-se com mais vigor, falha na tentativa do voo, arrasta-se uns 3 ou 4 cm.
Experimenta ficar em pé, cai, as pernas não aguentam o peso.
Já são mais de 5 minutos. Os mesmos movimentos, cada vez mais descoordenados,
debate-se, cada vez com menos força. Por momentos fica paralisado… e retoma com
maior ímpeto.
Está brigando com a morte. Levanta as asinhas no estertor de alcançar as alturas, no
desejo de sangue. Fracassa novamente, fracassa mais uma vez e mais uma.
Continua se arrastando na minha mesa, sua futura tumba. Em agonia, descansa
debaixo de um envelope. Afasto o papel para ver melhor. Começa a rodopiar, para e
descansa, experimenta novamente e num bater desordenado de asas, vida se esvai.

O menino pergunta:
O pernilongo está encantado?
Sim.
O menino começa a chorar.

Leia na mesma série: A terra que nos acolhe e É possível que nesse momento...Baratas e pernilongos e nossas crueldades do dia a dia

12 comentários

  1. Sylvia, gostei muito do conto . Tão enxuto e intenso . As duas historias – mãe encantada e choro fraquinho de criança nas beiras do cotidiano. O olhar atento do narrador traz tudo à tona .

    1. Aurita, respondi ao seu comentário no lugar do comentário do Leo. Não consegui editar ou copiar o mesmo aqui.
      Digo então o que já disse lá, com outras palavras, obrigada, viu? Seus comentários são preciosos. Fico muito feliz.

  2. Comovente, as palavras se tornam imagem, o menino e a mãe perdida/encantada, a efemeridade transpassada pela poesia, esta feita de lágrimas, de ganhos e perdas. O mosquito morre, o menino se sustenta no encantamento. Bela escrita!

  3. Sylvia, um conto poema. No mosquito “encantado” o menino vê a mãe “encantada”. E começa a chorar. Sua mesa, a futura tumba. Que duro para uma criança lidar com a morte da mãe…

  4. Somos também parte da natureza. Muita vezes esquecemos isso. Sofremos os mesmos processos incontroláveis de um pernilongo. Frágeis e fortes.
    Sylvia, lindo conto. Uma lição de síntese e profundidade. Que belo olhar de narrador!

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