Viajo na tarde fria e chuvosa de final de inverno. Retorno de visita à Mooca, mas evito a Radial Leste, pesada demais, carros disputando todos os espaços das pistas. O mundo líquido moderno, de que Bauman nos falou, chegará ao ponto em que carros e seres humanos possam se liquefazer e fluir perfeita e completamente pela área dos antigos asfaltos? Juntos, carros e humanos, a fluir de uma guia à outra?
Voam-me tais pensamentos estapafúrdios, pontilhados de alguma angústia. Para suportar a lentidão do trânsito cabe intercalá-los com notícias e comentários que vem do rádio: o jogo decisivo da semana; o professor Pasquale navegando palavras pelo Houaiss; alguma música. Suspendo a atenção e relembro a apresentação do Yamandu Costa e seu mágico violão de sete cordas fazendo dueto com um simpático cantor português. Preciso rever.
Sigo pelo final da antiquíssima trilha ocupada pela rua da Mooca, linha de entrada para as áreas “além Tamanduateí”, tomadas aos indígenas nas primeiras expansões da Paulicéia. Paro no engarrafamento do Glicério: nada a fazer, esperar desentupir contemplando o chuvisqueiro que segue impassível. É quando alguns sons agudos conseguem invadir minha nave. Vem dos baixos do viaduto. Um filhote de cachorro latindo e correndo com uma criança maltrapilha de 3 ou 4 anos. Brincam felizes, alheios à manada de veículos que rasteja ao lado. A felicidade existe, vive de instantes, está ali a prova. Vejo que disputam agora um trapo sujo que serve de cabo de guerra: menino e cão, cada qual puxando para um lado.
Penso, num desatinado ato de insegurança, abrir a janela molhada e tirar uma foto com meu celular. Alguém buzina, entretanto. O trânsito andou, devo seguir. Claro, não há que se ter ilusões, mais uma dezena de metros apenas. Paro novamente e vejo ao lado uma barraca e, junto a ela, duas mulheres. Uma do lado de fora, acocorada junto a um improvisado “fogão” alimentado por restos de madeira, a outra na entrada da barraca com uma criança de colo. Uma delas deve ser a mãe do menino que corria lá trás, imagino. Mais ao fundo há um vulto deitado, enrolado num cobertor. Parece dormir, parece morrer.
O cortejo motorizado vai seguindo. Vejo propagandas de políticos sorridentes afixadas nos postes. Me parecem algo pornográficos naquele ambiente. Logo perco a visão dos baixos do viaduto, sou lançado ao mar agitado da via expressa e acesso a 23 de maio.
Percebo que acabo de atravessar um abismo profundo que me separa daquela gente abandonada. Parte de mim, porém, ficou com o menino e seu cãozinho. Como fazer para que ele possa escapar da selvageria da cidade? E possa viver com dignidade, possa saber de máquinas e computadores, possa inventar e saber de notícias, possa criar e saber de Baumans, de Pasquales e Houaisses, de Yamandús e violões de sete cordas… Como?
Teremos respostas? Avanços serão lentos, como o rastejante viário? Procuro respostas, afinal navegar é preciso, desanimar jamais.
Carlos, achei tocante essa sua crönica da nossa cidade e seus moradores tão vulneráveis e às vêzes täo felizes naquele àtimo em que um cäo e uma criança se irmanam na brincadeira. Gostei mto!
Prezado Carlos, você não precisou da foto com o celular pra retratar a sua cidade de maneira tão fidedigna, tão crua e tão amorosa. Mais uma belíssima crônica paulistana à Lourenço Diaféria. Parabéns!!
Carlos,
Sua crônica é musica para meus ouvidos. É Brasil, é SP é Rio , são todos os estados e cidades. Traduzir nosso sentimento de repulsa às condições em que vivem
os desaventurados pobres , poeticamente, alivia o fato ao ler seu texto. Comparo -o ao meu sentimento de inconformidade e o recheio com a desculpa única de que a desumanidade existe em todos nós. Passamos por ela, seguimos em frente. Incapacitados, a nao ser delicadamente oferecer um pão com manteiga e a história do Velho e o Mar, frente ao mar ou presos no mar revoltado, agitado, incongruente do transito. Liquidificação e Mario Quintana, tudo haver!