o manto, conto de Liliana Wahba

O manto

Nasceu com uma ligeira deformação da coluna, detectada hipercifose congênita. O neurologista pediátrico balbuciou, diante da pergunta lamentosa da mãe se era corcunda, que havia tratamentos e, em último caso, cirurgia. Com a bebê no colo após um parto natural de horas, a mãe esgotada segurava lacrimosa essa pequenina tão perfeita com proeminência desproposital.  A menina era graciosa e esperta e foi crescendo com as piores expectativas confirmadas; o ângulo da protuberância se acentuava apesar de massagens contínuas, fisioterapia e exercícios. Aos três anos, dolorosa cirurgia de recuperação penosa e lenta teve efeito mínimo e não poderia ser repetida devido a risco de lesão na medula; a anatomia não ajudava.

Os pais encararam corajosamente a deformidade da filha. A mãe insistia em corrigir sua postura repetindo “fique reta” horas a fio, diante do espanto e reprovação de parentes e vizinhos. O pai a chamava de minha princesa e lhe contava histórias acariciando seus cabelos de ondas, sua face, os braços e a saliência dorsal com gestos suaves; o conto preferido era sempre solicitado, o da rainha que percorria terras longínquas com a mochila nas costas carregando surpresas, uma viajante incansável.

A tenacidade da mãe resultou em que a filha desenvolvesse longas pernas e braços voláteis, em poder andar sem se curvar para frente, mas inclinada à direita, o que a fazia olhar de lado com seus olhos salpicados de pontos amarelos; um olhar misterioso e indagador diante do qual os culpados de algum malfeito sentiam vergonha e os entristecidos se enterneciam.

Parecia um pecado do destino uma jovem tão encantadora carregar tamanho fardo e defeito. Para piorar sua sina, foi desenvolvendo um senso estético apurado; as esculturas antigas a fascinavam, envergonhava-se de sua imperfeição que considerava uma afronta às belas formas. Na passagem da adolescência à juventude quis experimentar o sexo, permitido às pressas, sem envolvimento, sem exposição ou nudez e entrelaçamento de corpos.

Para esconder a imperfeição usava capas drapeadas pregadas aos ombros de comprimentos diversos, até os tornozelos ou até a cintura, de seda clara no verão, de veludo vermelho, verde e azul no inverno.

Uma única vez conheceu o amor e o erotismo aos vinte anos em uma praia em noite de luar, quando se banhou despida e sua corcunda resplandecia a claridade do astro como se uma lua menor estivesse pousada nas costas. Sentiu-se inundada pela sensação de beleza toda dela, entregando-se ao desconhecido que a admirava e a tomava nos braços fundindo cheiros de flores silvestres e madeira umedecida.

Morreu jovem e muitos disseram que a viram como constelação com seu manto esvoaçante e luminoso percorrendo o universo.

3 comentários

  1. Pena que jovem tão linda tenha morrido tão prematuramente. Tinha um belo futuro com seu gosto por belas formas e seu olhar salpicado de pontos amarelos.

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