– Inspirado em O nariz, de Nikolai Gogol –
A mulher acordou e o espanto se deu na primeira hora de ir ao banheiro, o jato de urina saía de um pequeno orifício na pele lisa, lisinha, sem dobras ou reentrâncias. Meio adormecida não percebeu o que faltava, quando subitamente, gritou: a vagina, o que houve com minha vagina!?
A invocada pelo grito estridente, por sua vez, encontrou-se perdida e, sem noção de onde e como, andava solta pelas ruas, sem direção ou ideia de quem era. Confiou no instinto antes de buscar a razão e, percebendo-se sem proteção, a pele exposta, buscou uma loja e envolveu-se em uma bela capa cor púrpura que lhe permitiu acalmar-se e meditar sobre seu estado.
Estranhou particularmente o ângulo de visão, vertical e ereto abrindo um campo com perspectiva e linhas desenhadas retas, longas, acostumada que estava com circularidade e voltas que se dobravam de modo côncavo. Coragem não lhe faltava para enfrentar a nova condição e, achando que não adiantava lamentar o antes, foi rumando pelas ruas da cidade em busca de algum sentido que lhe desse uma definição de si.
Após percorrer algumas paragens, mulheres de intenso batom vermelho com poucas roupas e seios à mostra desfilavam assobiando, remexendo. Homens se dirigiam a elas em rápidas conversas e acordos. Um deles abordou-a e lhe fez a proposta de ir até o hotel, ao que ela replicou: – Por quem me toma? Não vê que sou uma dama? Comigo somente com flores, e têm que ser de pétalas de veludo natural. Afastou-se do homem perplexo com o sentimento de ter agido bem e aprumou a capa seguindo em frente.
Chegou a uma estação de trem, fascinada com aqueles vagões reluzentes e o vai e vem de rostos tão distintos, mas antes de subir procurou uma lojinha de maquiagem; queria viajar com classe. Maquiada e com chapéu de plumas sentiu-se muito confiante. A paisagem era deslumbrante, rápida e lenta, formas se dispersavam e concentravam, cores esmaeciam ou fulguravam, sons das estações misturavam-se às falas de pessoas e de crianças. Nunca antes expandira tantas sensações, sempre fora mais íntima e introspectiva. Chegou a uma estação e achou que ali devia descer. Não se sentia mais perdida.
Sentou num café perto da estação, uma charrete com dois cavalos passou por ela e usufruiu o ressoar dos cascos no asfalto; o som adormeceu-a um pouco e quando despertou do devaneio viu o garçom olhando curioso para ela. Com respeito e modos ele perguntou o que uma dama tão formosa fazia nesse lugar de interior, ela devia ser da grande cidade, habituada a sofisticados convívios.
Gostou de sentir-se misteriosa e manteve um sorriso alvissareiro. Saíram dali e foram andando mundo afora beirando rios e ladeando encostas; ora sentavam nas pedras, ora corriam em disparada, ora se deixavam penetrar pelos aromas da noite. Pouco falavam: teremos futuro? Impossível, mas quem o tem? Você é feliz? Sim, agora. E já foi?
Ao amanhecer voltou à estação e se despediram sem tristeza, talvez porque não tinham remorsos. No cadenciar do trem divagava e pressentia que se aproximava a hora de voltar; quis antes usufruir daquela total liberdade e desta vez não duvidava de quem era: era ela, em si, totalmente para si. Percorreu todos os vagões rodopiando e cantarolando.
Cartazes chamativos estavam espalhados na estação quando chegou: Alguém viu ou encontrou minha Vagina? Passou por eles com uma sensação curiosa de familiaridade, mas não tentou fixar o que evocava. Subitamente, uma mulher a abraçou com força e emoção contida: te encontrei! E se pôs a chorar copiosamente. Quis continuar andando e não conseguiu, a mulher a comovera. Abraçou-a e uniu-se a ela.
LILIANA LIVIANO WAHBA – Psicanalista junguiana. Profa Dra da PUC-SP. Diretora de Psicologia da Associação Ser em Cena – Teatro de Afásicos. Autora de Camille Claudel: Criação e Loucura.
Adorei o texto. Acredito que mesmo Gogol gostaria muito desta inspiração do inverosímil, “O Nariz”.
Nesta época em que as vaginas já conseguiram grande independência e vontade própria que, diga-se de passagem, têm todo direto. Excelente registro.
Hahahah! Descolada mesmo, literal e metaforicamente.
Quanta liberdade se pudéssemos nos descolar de nossas vaginas, deixá-las planar por aí, livres de quaisquer amarras, físicas, morais, espirituais, sexuais. Uma boa experiência tanto para as portadoras das vaginas, como para elas próprias.