Blog Clube dos Escritores Liliana Wahba O espectro

O ESPECTRO,
conto de Liliana Wahba

Ocorreu em uma sessão de análise, surpreendente efeito da imaginação denominado cientificamente pareidolia derivado de introjeção – absorver algo do outro – de acordo com o que aprendera. Os espíritas teriam outra explicação, mas esta estava fora de seu campo de conhecimento e atuação; considerava o espiritismo manifestação religiosa afastada da ciência.

Sua formação era sólida, a religiosidade desprovida de instituições tinha um fundo panteísta, o universo atuante nas partículas, nos seres vivos, nos sencientes e, em nós, acrescidos de consciência.

A faculdade de psicologia lhe forneceu base rigorosa quando enveredou para a psicanálise, freudiana inicialmente, com posterior estudo da teoria junguiana. Realizou estágio no Boston Group for Psychoanalytic Studies e no C.G.Jung Institute de Zurich. Exercia a profissão havia 30 anos e a imaginação e suas extravagantes formações eram material cotidiano para a compreensão de estados neuróticos ou à beira da psicose.

A permeação do inconsciente do paciente e do inconsciente do terapeuta era fenômeno observado e cuidadosamente assinalado como transferência e contratransferência. Anos de supervisão com terapeutas experientes lhe permitiram navegar nessas curiosas circunvoluções emocionais, tateando, mas provida de bússolas.

A ocorrência se deu na consulta com um paciente inteligente e atento, com recorrentes estados de depressão e pensamentos suicidas já atenuados e parcialmente assimilados após quatro anos de análise; voltavam justamente quando se sentia solto, avançando corajosamente na vida, com novo emprego promissor e em relacionamento afetivo satisfatório. Como acontece com certa frequência, nesse momento de plenitude a lembrança de ameaça desperta assustadoramente, algo enuncia: você não pode ser feliz.

Percorreram sensações, pensamentos, lembranças, emoções evocadas pela fantasia, pois a racionalidade está bloqueada quando o afeto é tão intenso. Importante destacar que era uma das sessões online: o paciente estava recostado à sua frente e atrás dele havia uma janela com cortina que projetava sombras na parede.

Propôs que ficasse uns minutos sentindo o percurso desse pensamento negativo, como ressoava em seu corpo. O paciente optou por fechar os olhos e permaneceu em silêncio durante 10 minutos. Nesse intervalo a terapeuta retomava mentalmente a história de violência familiar relatada, observando a respiração dele, o semblante angustiado que ia acalmando. A sombra tomou uma forma difusa, mas nítida, e assim permaneceu até o final da sessão, quando clareou e diluiu. Parecia o rosto espectral de um homem velho com boca que se movimentava em fala. Algo era dito, repetidamente. O que seria?, se perguntou.

Interpretou essa aparição como uma entrada não consciente nas emoções do paciente: a figura desenhava um complexo afetivo que o assombrava. Um rápido mergulho interior da terapeuta não identificou essa figura em sua história pessoal.

Quando ele abriu os olhos e contou o que tinha evocado, vieram lembranças de criança amedrontado por um pai rigoroso e punidor que o ameaçava por não ser homem suficiente e parecer um bicha; cintadas dolorosas, gritos e humilhações acompanhavam a tentativa de reeducá-lo. Mas esta história não era nova. O que o espectro dizia? Desta vez o paciente, com alta carga de emoção, se lembrou de seu medo de morrer, o pai tinha tanto ódio que podia assassiná-lo; o furor que viu em uma dessas punições o convenceu que o pai de fato queria que ele morresse.

Percorrendo mais memórias espontaneamente emergentes, viu imaginariamente seu pai chorando diante do pai dele, que lhe ensinava box e ria quando se machucava. A violência sádica estava naquela figura nas sombras, emitindo uma fala que, ocorria agora à terapeuta, podia ser: “me liberte”.

O paciente, emocionado, finalizou a sessão sem saber da figura na parede. Era desnecessário falar diretamente dela, a transmissão inconsciente foi trazida à luz; a ameaça e a violência transgeracional e o medo de morrer decorrente da violência vivida quando criança.

Após um ano de terapia suas obsessões cessaram; sabia que seria vulnerável perante incertezas, contudo, podia agora lidar parcialmente com elas sem se deixar invadir e  sem optar inconscientemente pelo fim do sofrimento, morrendo. 

Anos se passaram; em dia ensolarado, caminhando nas alamedas de um parque, de relance a terapeuta vislumbrou um muro que exibia o rosto espectral movimentando a boca como tinha feito no passado.

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