Clube dos Escritores 50+ Coveiro Sylvia Loeb

O coveiro,
por Sylvia Loeb

A enxada na terra, o barulho seco. O som surdo na tampa do caixão. Cava o buraco de um lado, faz um monte do outro, aspira o cheiro da terra fresca, boa pra plantar, boa pra enterrar. A roupa desconfortável atrapalha o corpo magro. As  mãos sujas na máscara, não pode, ele sabe, puxa, solta, aperta, sufoca. Alguém diz aqui é sempre  triste, agora ainda mais, ele pensa; só duas pessoas pra acompanhar esse que chegou. Choram em silêncio, ele fica olhando de uma pra outra. Preferia quando tinha muita gente. Era mais alegre. Ele se distraía. Sempre um no celular. Um desrespeito. Esse campo é sagrado, sabia?  Tá cheio de alma, elas ainda estão despregando do corpo. Leva tempo,  não descolam na hora da morte. São agarradas.

O som da terra na tampa do caixão não faz eco. Nessa hora ninguém fala. Se for mulher, chora; calado, se homem. Continua cavando.  É melhor a gente morrer de doença longa, assim a alma vai se acostumando, percebendo que não tem mais o que fazer aqui, não fica assustada porque quando a morte é repentina, ela desnorteia, nem sabe pra onde ir. Fica sem teto, alma desamparada. Quando o coração para, é despejada. A gente devia  confortar a alma, ela que precisa de atenção. Ninguém devia ficar olhando pro defunto, sem alma ele fica nu. Covardia. Abusam, aproveitam do morto que não pode virar a cara, desviar o olho, perguntar quê cê tá olhando?

Saudade a gente vai ter, mas sem alma a pessoa não é mais a mesma, esfria, acinzenta.

Outro dia vi a alma saindo do corpo de um cachorro atropelado na minha frente. Ele vinha abalado de longe, dentes arreganhados,  atrás não sei do quê, o carro bateu forte, o cão uivou, foi jogado três  metros adiante, um baque pesado, congelou, endureceu, vi a alma saindo do corpo, virou cadáver, acinzentou.

Ontem vi um velho morrendo, ainda respirava acinzentando na minha frente.  A alma se despedindo, tava viva, só desalojou, coitada. Parecia cansada de tanta vida vivida …  foi saindo devagarinho antes do suspiro final, talvez quisesse dar um tempo, pensando se ia reencarnar.

Levanta o braço cansado e deixa cair com o peso da enxada, mais um golpe seco na terra perfumada que a máscara não me deixa sentir, a cova ainda rasa. 

Shhhhh…não acordem as almas, elas estão descansando…

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