O Chão adormecido no baú de sonhos,
por Eliane Accioly

Do Clube dos Escritores para o mundo! A autora Eliane Accioly acaba de lançar seu livro pela editora Sangre Editorial! Confira o primeiro capítulo da história:

“Lavadeira Sá Antônia transforma roupa suja em limpa, a encardida em branca, a desbotada nas cores do arco-íris, e, além disto, é a confidente de Terezinha. Hoje dia de rio, e do alto da colina a menina escuta a voz gutural, cavalo galopante e livre, percorrendo cantigas do congado. Incauta, escorrega pela encosta áspera e árida e batendo as mãos para tirar o pó de terra senta junto à Sá, os pés descalços enfiados na água corrente. Entre murmúrios de rio a pequena conta dos pesadelos que tem com o pai despencando num buraco sem fim. Homem bom e trabalhador, ele procura coisas perigosas como andar em corda-bamba bem alta, sem rede de proteção, correr maratonas a beira de abismos, e a motocicleta com a qual brinca de voar. Até dente quebrou, e com o de ouro ficou parecido com Achiles, o viajante cigano que traz mercadorias para o pai vender na Casa Patrícia, a loja que o avô Pedro fundou, muito antes de Terezinha nascer. Parando de esfregar a roupa na pedra, a velha amiga enxagua do rosto os salpicos de sabão, e diz:

– Terezinha, seu pai é um sonhador.

– Isto é ruim?

– Não, não é. A gente precisa sonhar, o que seu pai carece é de chão.

Terezinha experimenta o chão com olhos, com os pés, e com as mãos. Vê chão aqui ali acolá, fora e dentro do rio cristalino, pois, no fundo pedras luminosas fazem às vezes de chão. Percebendo o desconcerto da menina, Sá Antônia continua:

– Gente há que não tem chão, e entouces carece fazer.

– Fazer chão? – Indaga Terezinha.

– Amanhã meu aniversário e dia de Santo Antônio. Vai lá em casa onde ocê é bem vinda desde antes de nascida, ainda na barriga de sua mãe. Também Rita em antes de nascida, vi na barriga da dona Sinhá, a sua avó.

I- A Rainha do Congo

Chegando à casa de adobe caiada, Terezinha encontra o mastro em triângulo com os santos juninos, Santo Antônio, São João e São Pedro bem vestidos e festivos, bailando ao vento. A fogueira acesa e farfalhante já oferecia brasas. No terreiro a mesa comprida coberta por toalha de renda branca com canjica, pé-de-moleque, bolo de fubá, tapioca, pipoca e frutas de pés de cajá-manga e caramboleira. Sucos variados, quentão para os adultos. Vestida de rainha Sá Antônia, rodeada de gente amiga, na tarde junina e música de congado. A coroa que usava não era a trouxa de roupa, mas outra, de prata e pedrinhas brilhantes. 

Ao som de instrumentos de percussão, sopro, pandeiros e tambor o grupo canta e dança se movendo pelas ruas da vizinhança. Bailando Terezinha percebe a Terra contar de ser redondo. Todos de branco com faixas azul-claro na cintura, e fitas finas e compridas azul-céu-do-meio-dia sombrejando os ombros. Terezinha a única bailarina com vestido estampado. O povo da congada festejava no Brasil a África, de onde os antepassados daquela gente alegre e sofrida, trazidos e feitos escravos. Depois espalham brasas, formam o caminho largo e comprido, que Sá Antônia descalça percorre sem pressa, a frente dos dançarinos descalços todos, andando nas brasas, atrás dela. Em seguida, a rainha do Congo convida sua pequena amiga:

– Vem andar descalça neste chão de brasa.

– Deus que me livre, Sá Antônia, meus pés vão torrar, já queimei no fogo e sei quanto dói.

Sá Antônia levanta a saia branca e longa mostrando os pés nus, e mais uma vez em passo de dança atravessa aquele chão de fogo em toda extensão, ida e volta, volta e ida, e então, mostra as solas dos pés, nada de bolhas, parecia sair do rio, e não do braseiro. Sá Antonia costuma dizer que Terezinha já nasceu educada, alegre e gentil com as pessoas. Tomada pela mão a menina fecha os olhos, coração disparado, se deixando levar.

O retorno traz leveza, alegria, coração festivo nada queimou nem torrou. Terezinha ri enquanto Sá Antônia cochicha no seu ouvido:

– A confiança é o fermento do chão que a gente carece construir. Ocê acreditou na velha aqui. Ter chão embaixo dos pés deixa a gente dançar e sonhar. E agora vai dormir, pois,

amanhã a jornada segue. Se tiver sorte, ocê encontra o seu baú de chão e sonhos. Nele, entre outras coisas, quem sabe uma brasa? Parte do caminho iniciado nesta noite.

– Uma brasa que não queima?

– Você vai ver.”

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ELIANE ACCIOLY –  Sou poeta, artista plástica, ensaísta e psicanalista. Mestre em Psicologia Clínica e Doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade de São Paulo (PUC SP) e coordenei o Oficinas de Poesia de 1994 a 2001. No primeiro semestre de 2001, trabalhei com adolescentes do Centro Comunitário Monte Azul, em São Paulo. Em novembro de 2003, apresentei meus poemas no XI Encontro Internacional de Mulheres Poetas em Mixteca, México. Além disso, publico ensaios, artigos e minha obra integra antologias nacionais e internacionais. Publiquei Histórias de Ventania (ficção), Corpo-de-Sonho, Arte e Psicanálise (ensaio); entre outros.

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