O boi é um bicho muito triste; sua fêmea, a vaca, parece tão triste quanto ele, mas só ela tem o consolo de conviver com a cria: o bezerro. O boi não tem a menor ideia de quem é seu filho e nem se aninha com a vaca, mãe deste. Quando o macho sobe sobre a fêmea se diz na roça que a fêmea foi coberta, mas logo esquecem isso visto que nos pastos ambos ficam a descoberto e se ignoram mutuamente como se nada houvesse ocorrido entre eles. Se acasalam, mas não se casam. Em outras palavras, boi e vaca não têm memória, mas nisso não diferem de muitos casais humanos. Os olhos do boi espelham a mais profunda tristeza, e só diferem dos nossos porque não derramam lágrimas, e olham resignadamente. O boi tem aqueles dois chifres na cabeça: são meros enfeites inúteis, só isso. Os mamíferos têm as mamas nos peitos, mas na vaca elas ficam atrás o que a impede de beijar a cria enquanto amamenta, prova irrefutável de ser um animal utilitário destreinado em afetos o que também é útil ao humano. O boi está sempre em pé sobre as quatro patas, e até quando dorme nunca fecha os olhos. O boi é uma máquina automática: mastiga capim mecanicamente, ininterruptamente, incansável (acho que se atribui isso a ter dois estômagos). Nada tendo a fazer, comer é tudo que sabe, mas atrelado a um carro, puxa-o resignado. Meu avô dizia que uma junta de bois vale mais que uma de médicos: a de bois tem dois que puxam o carro e a de médicos tem três, mas o doente morre. Nunca se sabe se um boi sente algo como raiva, felicidade, frio ou calor: sua pele grossa protege-o de todos os sentimentos. Raramente o boi emite um som, sempre o mesmo, atestando uma eterna e rouca monotonia melancólica: muuuuuuu…………………que em nenhuma circunstância retrata o que sente, absolutamente nada. Nem mesmo é sabido se leva susto, e até quando cai um raio que pode matá-lo, o boi permanece estático. Só se percebe sua manifestação de insatisfação quando tentam cavalgá-lo: deve sentir um incômodo tão grande que costuma pular (é o único sinal de descontentamento). Até nisso sua fêmea é passiva: roubam-lhe o leite do bezerro e nem por isso ela mostra insatisfação. Ninguém ensinou boi e vaca: obedecer é da própria natureza deles. Servem de modelos em presépios quando são indevidamente mostrados até deitados (caprinos provocariam muita agitação à paz do ungido). Da vaca tira-se o leite e depois o resto; do boi, só o resto. Rouba-se tudo dele, inclusive o esterco, sem lhe dar a mínima satisfação, e até o metano de seus gases é roubado: de bicho em que se furta até o pum não se pode esperar que se poupe algo! Tanto isso é verdade que depois de procriar, o boi não ganha aposentadoria; nisso difere de outros bichos: é morto com uma cacetada na cabeça e comido por humanos, exceto pelos muito mal-humorados, chamados vegetarianos, mas, que também desrespeitosos vestem sua pele dos pés aos peitos com sapatos, cintos, bolsas, e até casacos. O boi convive com humanos há milhares de anos e com eles ganhou proteção contra a sanha dos felinos, do mesmo jeito que os pássaros que comendo os vermes limpam a pele dos hipopótamos. A natureza sempre soube o que fazer por ser muito inteligente. Mas os bois não são escravos dos humanos, não levam chibatadas, e hoje suas peles não são mais marcadas a ferro quente: usam argolas em suas orelhas e lábios furados para identificá-los do mesmo jeito que as fêmeas humanas fazem em suas faces e ninguém parece se incomodar com esse hábito tão primitivo. Além de doar filé mignon e picanha, o boi não tem outra serventia além do que é aqui contado. Ninguém fez esse relato antes o que mostra a irrelevância dele para os humanos. Esquecia-me de falar sobre fezes do boi: com água dão à luz lindas plantas, flores e frutos, embora tenham outro nome, esterco ou estrume, usado como adubo, mas ninguém chama de cocô pois ficaria feio botar isso sujando nossas plantas caseiras. Os bois pastam em campos que eram florestas e onde viviam tantas espécies úteis para nós que foram dizimadas para dar comida a eles. São bilhões – de bois, um, de humanos, oito – mais muitas bombas atômicas. Do uso destas restarão no planeta apenas os bois, os pastos e a paz eterna. Sábia a evolução da matéria viva. Falta escrever sobre as cabras. As cabras se parecem muito com os bois, e o leite delas é bem gostoso, embora elas tenham odor peculiar desagradável e ao contrário dos bois não murmuram muuuuu…. mas méééé…
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