Sofremos de Verdade…
Então a mulher de Ló desobedeceu e olhou para trás. E assim foi transformada em estátua de sal.
Lá em casa, olhar o que não deve ser visto fazia parte do matriarcado. Elas olhavam para o proibido – e não viravam estátua de sal. Continuavam apreciando nossa miséria – e recriminando. Mas talvez não tenha sido bem assim…
Talvez elas não recriminassem. Não! Elas não recriminavam. Às vezes apenas notavam. Simplesmente porque tinham boa visão. Porém, enxergar além de certos limites já é pecado. Já é recriminação. Todo cidadão tem de nascer com algum grau de miopia. A boa visão é desaforo, crítica velada à imperfeição alheia.
Nasceram elas com esse defeito de fabricação: o dom medonho de apreciar as coisas em seu real tamanho. E, para um feito de tal monta, tinham método: retiravam de si vaidade e orgulho. Despiam de desejo suas percepções. Posicionando-se numa objetividade não humana.
Aí apoiadas, dobravam oceanos de amor, faziam distância, e mediam a estatura dos objetos de seu afeto. E saltavam. Cálculos complexos para afastar o efeito de sujeito, afastar qualquer ruído ou viés, corrigir a rota, alcançar o lugar exato. Quanto mais amor, mais corajosa a tarefa.
Convocando o zero, mal se sabe como sobreviviam ao frio dali. Des-habitando-se por completo, amorteciam a presença do observador. Mirando a mais ampla imparcialidade, calavam qualquer voz suspeita. Puristas, destemidas, encaravam a Verdade – maiúscula. E sustentavam-na!
E assim conferiam a pequenez de seus próprios amados filhos e netos – impedidos, daí em diante, coitados, de enganar a quem quer que seja…
Sofremos de Verdade, lá em casa. Deus nos ajude!
Esta é a estória do avesso de Medeia.
SERGIO ZLOTNIC – Psicanalista, é Pós Doutor em Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisador dos diálogos de Freud com os campos da arte. Colunista do Portal da SP Escola de Teatro. Pela Editora Hedra, lançou o livro de ficção Baleiazzzul, alusão ao atravessamento do processo psicanalítico. [email protected]
MARCELO CIPIS se formou pela FAUUSP em 1982 e desde 1977 trabalha como artista plástico, atuando na área editorial com ilustrações para livros, revistas e jornais. Atualmente colabora semanalmente para a coluna de Vladimir Safatle no caderno Ilustrada (Folha de São Paulo). Também vem realizando desde 1982 exposições em espaços públicos e galerias. Em 1991 participou da 21ª Bienal Internacional de São Paulo com a instalação “Cipis Transworld, Art, Industry & Commerce”. Ganhou o premio de melhor pintura da APCA em 1990 com a exposição na galeria Kramer, “Trabalhos recentes & Pyrex Paintings”. Ganhou dois prêmios Jabuti na categoria Ilustração com livros de sua autoria. Atualmente é representado pela galeria Emma Thomas de São Paulo.
Que texto! Medeias ao avesso que podem amar a pequenez dos seus, e com seu olhar, humanizar todos em volta. Sofrer de Verdade é condição para a compaixão?
Adorei essas mulheres que olhavam para o proibido e não viravam estátuas de sal…
que fabuloso poder olhar as coisas em seu real tamanho, despindo-se da vaidade e do orgulho. Grandes mulheres.