mulheres de ló - SERGIO ZLOTNIC e MARCELO CIPIS - clube dos escritores maiores de 50 - fifties mais

Mulheres de Ló

Sofremos de Verdade…

Então a mulher de Ló desobedeceu e olhou para trás. E assim foi transformada em estátua de sal.

Lá  em  casa,  olhar  o  que  não  deve  ser  visto  fazia  parte  do  matriarcado.  Elas  olhavam  para o proibido   – e   não   viravam   estátua   de   sal.   Continuavam   apreciando   nossa   miséria   – e recriminando. Mas talvez não tenha sido bem assim…

Talvez  elas  não  recriminassem.  Não!  Elas  não  recriminavam.  Às  vezes  apenas  notavam. Simplesmente porque tinham boa visão. Porém, enxergar além de certos limites já é pecado. Já  é  recriminação.  Todo  cidadão  tem  de  nascer  com  algum  grau  de miopia.  A  boa  visão é desaforo, crítica velada à imperfeição alheia.

Nasceram elas com esse defeito de fabricação: o dom medonho de apreciar as coisas em seu real tamanho.  E,  para  um  feito  de  tal  monta,  tinham  método:  retiravam de  si  vaidade  e orgulho.   Despiam   de   desejo suas   percepções.   Posicionando-se   numa   objetividade   não humana.

Aí apoiadas, dobravam oceanos de amor, faziam distância, e mediam a estatura dos objetos de seu afeto. E saltavam.  Cálculos complexos para afastar o efeito de sujeito, afastar qualquer ruído ou viés, corrigir a rota, alcançar o lugar exato. Quanto mais amor, mais corajosa a tarefa.

Convocando  o  zero,   mal  se   sabe   como   sobreviviam  ao  frio  dali.  Des-habitando-se   por completo, amorteciam  a  presença  do  observador.  Mirando  a  mais  ampla  imparcialidade, calavam  qualquer  voz suspeita.  Puristas,  destemidas,  encaravam a  Verdade  –  maiúscula. E sustentavam-na!

E assim  conferiam  a  pequenez  de  seus próprios  amados  filhos  e  netos –  impedidos,  daí  em diante, coitados, de enganar a quem quer que seja…

Sofremos de Verdade, lá em casa. Deus nos ajude!

Esta é a estória do avesso de Medeia.

sergio zlotnicSERGIO ZLOTNIC – Psicanalista, é Pós Doutor em Psicanálise pelo Instituto de Psicologia da USP. Pesquisador dos diálogos de Freud com os campos da arte. Colunista do Portal da SP Escola de Teatro. Pela Editora Hedra, lançou o livro de ficção Baleiazzzul, alusão ao atravessamento do processo psicanalítico.    [email protected]

Marcelo Cipis, artista plástico, ilustrador, Foto: Renato Stockler/ Na LataMARCELO CIPIS se formou pela FAUUSP em 1982 e desde 1977 trabalha como artista plástico, atuando na área editorial com ilustrações para livros, revistas e jornais. Atualmente colabora semanalmente para a coluna de Vladimir Safatle no caderno Ilustrada (Folha de São Paulo). Também vem realizando desde 1982 exposições em espaços públicos e galerias. Em 1991 participou da 21ª Bienal Internacional de São Paulo com a instalação “Cipis Transworld, Art, Industry & Commerce”. Ganhou o premio de melhor pintura da APCA em 1990 com a exposição na galeria Kramer, “Trabalhos recentes & Pyrex Paintings”. Ganhou dois prêmios Jabuti na categoria Ilustração com livros de sua autoria. Atualmente é representado pela galeria Emma Thomas de São Paulo.

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