Luciano de Castro Muito mais do que brincos Clube dos Escritores 50+

MUITO MAIS QUE BRINCOS, PULSEIRAS E SAPATOS,
por Luciano de Castro
Cuidado, contém ironias!

Está em todos os jornais, e é revoltante como Madame Fleurie vem tendo sua honra enxovalhada nas últimas semanas. Toda essa avalanche de matérias difamatórias surgiu após uma declaração da servidora numa reunião do CSJE —Conselho Superior de Jurisconsultos Estaduais. E o que teria dito de tão grave? Respondo-vos que ela não disse nada demais. Nada além de interceder pelos colegas novatos e de salvaguardar os ritos da sua profissão.

Mas se o discurso foi nesses termos, o que justificaria tamanha virulência contra ela? A questão é que Madame Fleurie se expressa com uma sinceridade inegociável. Embora admita não ser oradora, ela tem a expansividade inata dos que falam com o coração. Primeiro ela botou o dedo na ferida ao denunciar o salário de fome que o estado paga aos jurisconsultos em início de carreira. Segundo — e isso talvez seja o que mais tenha irritado a imprensa — ela assumiu publicamente que gasta seu dinheiro apenas com suas vaidades. Quanta coragem! À primeira vista, essas falas parecem ser mesmo elitistas e deslocadas da realidade do país, porém uma análise mais detida revela que são perfeitamente justificáveis.

Um jovem jurisconsulto, a quem conheci recentemente num happy hour, relatava as dificuldades que vinha enfrentando pra manter seu padrão de vida. Casado e com dois filhos adolescentes, o rapaz era um poço de lamentações. Nem mesmo a Weihenstephaner e o petisco de camarão que degustávamos pareciam animá-lo. “Minha vida social anda em petição de miséria. Como pensam que é possível sobreviver com 28.000 reais mensais? Só com educação gasto uma fábula.  O Leo faz aulas de tênis e equitação. A Isadora faz ballet e francês. Hoje tudo é muito caro. Olha que é uma vida de renúncia, viu?! Faz tempo que não vamos a Bariloche e a prestação do jet ski está atrasada. Dureza, amigos”. Compadeci-me do moço e entendi melhor a argumentação da veterana jurista em defesa da classe.       

O segundo ponto defendido por Madame Fleurie exige mais perspicácia pra não embarcarmos na interpretação rasa. Quando diz — não sem antes agradecer a Deus — que se sente afortunada por não depender do marido e investir seus proventos em vaidade, não se trata dessa vaidade fútil a que estamos acostumados, mas de outro tipo, mais raro e nobre, que eu chamo de vaidade instrumental.  Assim como o padre usa a batina e o policial usa a farda, o jurisconsulto precisa trajar indumentária e adereços compatíveis com a liturgia do cargo. Ao relatar que investe o seu dinheiro na aquisição de brincos, pulseiras e sapatos, Mme Fleurie está investindo não na sua aparência pessoal, mas nos seus instrumentos de trabalho.

Pra uma mulher comum, um brinco é só um enfeite, uma veleidade feminina. Pra uma mulher jurisconsúltica, um penduricalho auricular em ouro 24 quilates é uma peça funcional, um verdadeiro amuleto com o poder de inspirar as decisões mais difíceis. O mesmo acontece com as pulseiras, cujo fino tilintar confere à assinatura dos pareceres um ar de solenidade e chiqueza. E o que dizer dos sapatos? Alguém consegue imaginar uma jurisconsulta que se preze indo exercer seu ofício sem estar devidamente assentada sobre um Gucci ou um Louis Vuitton? Impensável.

A sinceridade às vezes incomoda. Se for assumida por alguém de destaque então, suscita a maledicência e até uma pontinha de inveja. Acho que foram esses sentimentos que motivaram tantos insultos e desapreços contra Madame Fleurie. Entendamos que destinar toda sua pecúnia para trajar-se adequadamente não é frívola ostentação, e sim um ato de desprendimento. Na vaidade instrumental, os acessórios são muito mais que brincos, pulseiras e sapatos.   

*Goiânia, junho/2023

6 comentários

  1. Como você é lúcido e justo!
    Pois é, as histórias que você relata são diametralmente opostas. Mas as pessoas gostam mesmo de julgar sem pensar e jogar tudo no mesmo saco raso. Hoje em dia, falar a verdade virou sincericídio…beijos

    1. Ai, Luciano, só agora entendendi o contexto após ver o vídeo de Madame Fleurie que percebi que eu nada havia entendiido, e já fiz toda uma análise…kkkk.
      Isso que da ser um ótimo cronista, nem com a chamada do “contém ironia” eu captei..rsrs
      Muito boa! Bjs

  2. Adoravelmente sarcástico! Me compadeci da pessoa, ou seria da criatura…tempos modernos criando monstras ou seriam tempos que se repetem…Salve a literatura que nos livra desses embates!

  3. Realmente só com uma boa dose de ironia para aguentar essa galera que se acha…. Excelente texto. Uma obra de arte para descrever as diferenças sociais e a concentração de renda desse País

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