Clube dos Escritores 50+ Elisabeth Ferroni Moça branca autora convidada

Moça branca da cidade, por ELISABETH FERRONI, nossa autora convidada

Wekanã tenta mergulhar a cabeça, limitado pelas boias de braço que coloco todas as manhãs, receosa de que meu filho se afogue em mar sem ondas. O esforço vale a pena pelo sorriso que me devolve. Pele morena avermelhada, olhos grandes pretos, cabelo preto liso, franja curta. Corte tipo tigela, era como eu e minhas colegas de faculdade costumávamos chamar aquelas cabeças indígenas na primeira vez que cheguei por aqui.

Cinco verões atrás. Quatro garotas universitárias deixaram Ouro Preto em direção a 45 dias de férias perfeitas. Sexo, drogas e forró, porque as únicas pedras rolando por aqui são as dos rios Caraíva e Corumbau. O portão para o acesso ao camping dava na rua do rio, onde mulheres e crianças pataxós estendiam artesanatos e sorrisos.

Passados dois ou três dias, eu conhecia de nome poucas sementes dos colares coloridos e de algumas crianças. Kathueli me encantou. Uma longa trança que chegava às escápulas, curiosa, falante, gostava de abraçar e de contar histórias da família. Os Braga. Sobrenome adotado há duzentos anos. Fomos conhecê-los. Dona Helena, a anciã que confecciona os colares que a neta vende, sentava de cócoras terminando de tingir de verde o tento. Ela se levantou e sua cabeça dava no meu peito, me surpreendi com a baixa estatura. Irauã, um moço alto que chegava molhado do mar, retirou 4 cocos e nos ofereceu a pedido da mãe. Uma pressão nauseante na barriga quando nos olhamos. Bebi a água engasgando que nem peixe com anzol na boca. Irauã é pescador e marido. Nos casamos no final do mesmo ano, em cerimônia conduzida pelo pajé.

Grávida e universitária, nos instalamos em um quarto maior na república perto da faculdade de geografia. Seis meses de gestação e dois anos de curso pela frente. A configuração funcionou até que Wekanã completou um ano. Apesar de ter se interessado pelo estudo das ciências naturais, assim que terminou o curso técnico na mesma universidade, Irauã decidiu voltar para a aldeia. Não se acostumou com a comida, as noites barulhentas, o tórax vestido e a ausência do mar. Eu percebia seu olhar zanzo e perdido.

Aquele não era seu lugar.

Ficamos mãe e filho por mais um ano antes de nos unirmos aos Braga. Quando voltamos à aldeia, Irauã já tinha levantado quarto, sala e banheiro, sem forro, mas com energia elétrica. A cozinha é comunitária. Mas quem comanda é Dona Helena. Três meses depois, fiz levantar cozinha e uma pequena área de serviço. Mandei trazer máquina de café e de lavar roupa.

A moça-branca-da-cidade foi como me chamaram durante o primeiro ano. Não pude fazer nada quanto à cor, minha pele arde ao sol. Nado com camiseta de mangas longas com proteção ultravioleta. Mas pedi que adotassem meu nome, Carol.

Acostumei fácil com o céu estrelado, o barulho do mar, a maternidade em tempo integral, o peixe com farinha de mandioca. Sinto falta das verduras. Não pertencem a esta terra arenosa e quente.

Nas grandes rodas festivas, os mais velhos falam em patxohã. Ainda não aprendi. Tampouco o artesanato. Não quis. Pelo menos ainda.

Na vila chegaram o álcool destilado e as drogas. As coisas-feias-da-cidade. Duas mortes mês passado, uma de cada. Irauã bebe todos os dias, já quase não sai para pescar e quando vai mar adentro, sua pesca não paga a gasolina.

Pirata late.

Minha atenção emerge do mergulho.

Sou peixe fora d’água.

No mar, meu filho é a única criança usando boia.

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