Na casa dela é que aconteciam as coisas mais maravilhosas do mundo!
Minha avó tinha uma cama imensa, com lençóis perfumados e frescos. Eu adorava dormir com ela, que tinha cheiro de lavanda e era bem gordinha. Eu punha as pernas em cima do seu corpo e dormia no embalo da sua respiração.
No meio da noite me acordava para tomarmos banho na banheira cheia de água quente perfumada. Uma farra. A minha mãe dizia que minha avó era muito infantil.
Nessa mesma banheira, nas festas de Pessah, ela punha carpas vivas, peixes grandes e negros, de olhos redondos, que nadavam sem parar de lá pra cá, de cá pra lá, sem saber que seriam transformados em gefilte fish.
Adorava lavar o chão com água e sabão, ficava descalça arregaçava a saia e começava a farra com as crianças. Jogava a água ensaboada nos ladrilhos, esfregava com a vassoura e as crianças deslizavam e se jogavam na água, aos gritos.
Em um pequeno pátio perto da sala de jantar havia galinhas que ciscavam sem preocupação e não imaginavam que teriam, em um gesto seco, o pescoço quebrado — TRECC! — para serem servidas assadas.
Seriam depenadas dentro de uma bacia onde se despejava água fervendo para soltar as penas. A galinha ficava esbranquiçada. Em seguida, sua barriga era aberta para ser limpa e esvaziada de tudo que havia por dentro, fígado, moela e uma bola furta-cor maravilhosa. Parecia um globo do céu que guardava dentro de si milhares de bolinhas… a oveira! Fiquei sabendo que este é o nome onde estão guardados os futuros ovos que a galinha vai botar durante a vida.
A mesa era farta, alegre e barulhenta, rodeada da família e dos netos. Havia os prediletos e os outros. De um deles, bem magrelo, o Vivian, andava atrás com um ovo cru equilibrado em uma colher de sopa. Meu primo corria e ela atrás, com o ovo na colher. Muito ocasionalmente acabava na boca do primo, retorcido de nojo…
Nunca vi minha avó parada, estava sempre fazendo algo, cozinhando ou limpando ou aprontando com os netos, mas no fim do dia, cansada, tomava um banho e vestia uma camisola. Deitava-se na cama grande e pegava uma revista. Eu ficava junto dela, fazendo companhia, aspirando o perfume de sabonete de lavanda.
Minha avó gostava de pegar na minha mão, alisar bem a palma e depois perguntar para cada um dos meus dedinhos: o que é o que é que tem aqui dentro? e ela mesma respondia, quindim, bala de côco, bolo de chocolate, pudim e ríamos e repetíamos e ríamos…e repetíamos…
Foi muito pobre na infância, perdeu a mãe cedo. Criada na casa de uns tios, contava que jamais havia ganho um par de sapatos só para ela; ganhava os de segunda mão, sempre maiores do que seu pé. Eu tinha muita pena dela por ser órfã.
Guardava uma imensa forma de quindins debaixo da cama e os distribuía com parcimônia para os netos gulosos. Quindins feitos em casa pela querida Juca, que ficou na casa da minha avó a vida toda, desde menina, e que morreu poucos meses depois da morte dela.
A morte das duas estendeu um véu cinzento sobre a família.
Mas o tempo, ah, o tempo tem o poder de transmutar a dor da perda em recordações, lembranças em retalhos, imagens que surgem e desaparecem, momentos de uma vida que se faz presente por essas nesgas da memória, que ativam o passado…minha avó, sempre presente, basta que escreva a palavra avó e ela aparece de camisola no fim do dia…
Que beleza de texto, Sylvia, eu ri muito do destino das carpas. Como as banheiras da nossa infância eram versáteis, né? Que delícia de avó! Queria ser uma das netas, que não fazia parte do grupo dos outros, rsrs
Lembrei que minha avó, bem mais sisuda que a tua, tb colocava a camisola no final do dia! Que delícia de infância! 🫶🏼
Lindo Sylvia! Toda a avó é um meio infantil. A coisa mais linda é a gente virar criança de novo, depois de velha, quando chegam os netos..
Amei!